JOEL NETO E O D E S

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Entre o sagrado e o profano, o divino não conhece hierarquias. É mais do que um culto: é uma visão do mundo, a verdadeira consagração dos ideais da revolução francesa, formulados e praticados avant la lettre. E a que, depois de séculos de anátema oficial, o Papa Francisco já chamou “o antídoto para o frenesim contemporâneo”. O dia de Pentecostes sucede este domingo
Quando voltei aos Açores, determinado a ocupar a casa dos meus avós — para nós, miúdos dos anos 80, essa casa mítica onde os primos se reuniam, escapavam aos ralhetes dos pais e iam buscar notas de cem no aniversário —, vinha convencido de que a ilha não reservava surpresas para mim. Nascido e criado na Terceira, tinha vivido 20 anos em Lisboa, e tinha-os vivido apaixonadamente. Criara amigos e rotinas, intimidades e arrelias: em muitos sentidos, fora um lisboeta como os outros. Mas, ao mesmo tempo, nunca deixara de ser o açoriano de serviço.
Regressara sempre que pudera. Mantivera-me a par das gordas dos jornais e das novidades literárias. Escrevera reportagens. Recapitulara mil vezes o mapa de estradas, os melhores miradouros e as cartas dos restaurantes. Colecionara os mexericos da freguesia ao telefone com a família — cultivara a memória, e com sentido de missão. Todos os meus livros, as ficções e os volumes de crónicas, traziam a ilha como musa. Eu tinha de saber o que me esperava.
E, no entanto, não conseguia largar o caderninho de notas. No primeiro dia de novembro, bateram-me à porta centenas de miúdos, vindos da vizinhança e até de outras freguesias, a pedir o “pão por deus”. Ao chegar-se o Carnaval, fiquei a saber que, anos antes, a remota freguesia das Quatro Ribeiras havia organizado um concurso de bailinhos, em busca de artistas e de espectadores, e que nem uns nem outros tinham gostado da ideia de uma competição. E, pelos cafés de Angra do Heroísmo, de que me fui tornando habitué logo nesse primeiro inverno, as empadas também se faziam com farinha, ovos e manteiga, mas levavam açúcar.
E mais. Um poema de Marcolino Candeias falava dos “raparigos”, rapazes extremosos e prendadíssimos que — dizia — eram a verdadeira memória da cidade. Uma votação que promovi na Internet, mais para estudar as reações do que por entusiasmo, elegeu a única negra do inventário como a rainha mais bonita da história das são-joaninas. E o meu vizinho de cima, que se reformara aos 42 anos e gostava de gabar-se de nunca ter trabalhado realmente — “Enganei sempre o patrão: mandava-me fazer uma coisa e eu punha-me a fingir que trabalhava, à espera da hora de sair” —, perdia afinal horas infinitas a ordenar, de borla, o estacionamento da Sociedade Filarmónica.
Tive logo a sensação de que todos esses achados contavam uma só história, e que essa história talvez fosse a de uma identidade. Havia naquele povo — havia em nós, ainda que eu nunca tivesse estado de facto consciente disso — em simultâneo uma propensão para a partilha, uma irreprimível atração pela diferença e o desconhecido, um impulso para diferentes géneros de subversão, e também uma falta de ética de trabalho às vezes paralisante.
Escrevi bastante sobre isso, na crónica, no diário e na própria ficção, procurando entender os padrões desse mosaico que tanto contrastava com a impiedade de Lisboa. Mas talvez se possa dizer que foram precisos dez anos, tantos quantos levo desde o dia em que proclamei o meu “para sempre, aqui estou” e comecei a desenhar o meu jardim, até ser capaz de lhe determinar os fundamentos.
Dizia Nemésio que, para nós, açorianos, a geografia vale tanto como a história, e não seria nunca de estranhar que, num lugar assim longínquo, fragmentado, assolado por vulcões, terramotos e temporais, triunfasse um culto capaz de celebrar a alegria e a liberdade, o perdão, a partilha e o igualitarismo. Aos povos de fronteira, ameaçados pelo inimigo ou os próprios elementos, nunca faltou ímpeto religioso. Mas neste caso falamos de mais, e a explicação — sei-o agora — está no Espírito Santo.
O também chamado divino vive hoje nos Açores, e em particular nas ilhas do grupo central (Terceira à cabeça), um fulgor que não conhece em nenhum outro lugar. E nada como essa devoção espelha tão bem, mas sobretudo enforma tão fundamentalmente, o carácter do povo que tantos visitam, na sua vertigem por escapismo e cruzinhas no mapa-mundo, mas poucos chegam a conhecer.
Entre o sagrado e o profano, o culto da Terceira Pessoa da Santíssima Trindade não conhece hierarquias. Inclui onde outros excluem, e a sua pulsão é ao mesmo tempo hedonista e radicalmente interclassista, à medida das ansiedades do século XXI. Celebra-se a partir de segunda-feira, 50 dias depois da Páscoa — tantos quantos compreende a soma dos 40 que Jesus passou na Terra após a ressurreição com os dez que, segundo o livro de Atos, a mãe e os apóstolos esperaram até que sobre eles descesse o Espírito sob a forma de línguas de fogo, durante o advento do Pentecostes, tido como o momento do nascimento da Igreja. E é, no mínimo, uma das últimas utopias portuguesas.
O IMPÉRIO APÓS O CATACLISMO
O culto do Espírito Santo — ou Espírito da Verdade, ou Paráclito, “aquele que consola” — nasceu da devoção de Gioacchino da Fiore, um abade cisterciense e filósofo místico calabrês que, ainda no século XII, se empenhou em oferecer à História um fio condutor capaz de manter viva a esperança num plano redentor para a existência. O seu entendimento profético e milenarista do mundo, assente na unidade das três pessoas da Santíssima Trindade e na ideia de um império do Espírito Santo após o cataclismo que a desordem anunciava, pareceu de imediato dar resposta às grandes inquietações da época. Vivia-se um tempo conturbado, com o crescimento do islão e as cruzadas, os cismas eclesiásticos e os conflitos entre o papado e o sacro império: impunha-se à cristandade ser capaz de contrapor a estabilidade à contingência.
Roma não gostou, e, em 1256, o núcleo central da doutrina foi condenado pelo Papa Alexandre IV. Mas isso não a impediu de chegar a Portugal 200 anos depois, viva ainda, pelas mãos de Isabel de Aragão, a quem viriam a chamar rainha santa. Ritual de celebração e partilha por ocasião das primeiras colheitas, ganharia expressão em várias regiões do continente — como Tomar ou Alenquer —, o que faz dele uma das mais antigas expressões do catolicismo popular português. Mas nos Açores tornou-se mais do que um culto. Tornou-se (e permanece) um modo de vida — uma visão do mundo.
Favoreceu-o a circunstância de os povoadores do arquipélago provirem de múltiplas origens, do norte ao sul de Portugal, e ainda da Flandres e outras regiões europeias. Não existia uma fé unificadora, e o divino estava recheado de crenças e preceitos convenientes a uma sociedade em construção a partir de fiapos de gente e de terra. Ademais, a hostilidade do meio e a angústia do isolamento desafiavam não só à prática da cooperação, mas à da alegria, que o Espírito Santo sempre permitiu opor à vocação quaresmal, penitencial — em suma, ao medo —, da liturgia clássica.
Já o cronista Gaspar Frutuoso, escrevendo 150 anos após o início do povoamento, menciona a prática do culto nas ilhas, indicando ser comum a todas elas. O primeiro hospital dos Açores, criado por iniciativa da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo (1498), recebeu a designação de Hospital de Santo Espírito, que mantém. Entretanto, no século XVI, a existência de Irmandades do Divino Espírito Santo era generalizada. E, quando as autoridades civis avançaram com a criação de um grande hospital em Ponta Delgada também, quase 500 anos depois do de Angra (1990), nem tentaram inventar: chamaram-lhe Hospital do Divino Espírito Santo.
A ortodoxia torceu o nariz durante séculos. Iconoclasta, o Espírito Santo, glorificado no Novo mas também no Antigo Testamento (até no Talmude e na Midrash), era muitas vezes a porta de entrada dos cristãos-novos judeus no cristianismo, que entretanto iam contaminando com uma série de práticas ditas pagãs, e apenas permitidas por uma devoção com a latitude daquela. Mas, sobretudo, era perigoso.
Porque as irmandades sob os seus auspícios nunca tiveram coluna vertebral. Eram e são organizações inteiramente horizontais, sem obediência a qualquer entidade superior terrena. Todas as relações que ali se estabeleciam, então como hoje, resultavam em exclusivo da dinâmica gerada de modo espontâneo entre os seus membros. Por outras palavras, dispensavam (e dispensam) a intermediação de um sacerdote, sugerindo que cada fiel podia ser o eixo — cada fiel era o eixo. E não haveria muitas ameaças evidentemente maiores do que essa para a pirâmide da Igreja.
A perseguição não tardou. O Concílio de Trento (1545) e a contrarreforma tridentina ilegitimaram o culto, reduzindo a sua bênção ao rito romano, às misericórdias e a pouco mais. Por todo o mundo latino, a Inquisição reprimiu a participação popular na organização dos festejos, sob o pretexto da depuração de manifestações profanas, e o anátema prolongou-se no tempo, com diferentes formas e intensidades, vigorando, em geral, até ao Concílio Vaticano II (1962-1965).
Mas os Açores ficavam longe, e o Tribunal do Santo Ofício, apesar da representação local, só chegou a fazer-lhes três visitas solenes, castigando uns quantos comportamentos, mas apenas no domínio dos costumes. O catolicismo local permaneceu muito tempo nas mãos dos franciscanos e da Ordem de Cristo, que não se opunham à devoção do divino — e, depois de um período de submissão à diocese do Funchal, passou a dispor do seu próprio bispado, tendo além disso como padroeiro o rei de Portugal, mais eficaz na fiscalização das matérias temporais do que das espirituais. No tamanho, nos recursos ou na extensão caritativa, mas com frequência nos três ao mesmo tempo, o universo do divino nunca mais parou de crescer.
O FERVOR DA DEVOÇÃO
Hoje, Roma não só já não o persegue, mas parece reconhecer a sua nova acuidade, num tempo de pulverização das referências. João Paulo II atribuiu ao “sopro do Espírito Santo” o “momento de graça” do Concílio Vaticano II, fonte de uma “nova primavera para a Igreja”. Há três anos, na celebração do Pentecostes, Francisco apresentou-o como o “antídoto para o frenesim contemporâneo”, e ainda há meses, em audiência geral, lhe chamou a “memória de Deus em nós”. “Este é o momento”, desafiou, “de dizer ao Espírito Santo: ‘Vem, vem, Espírito Santo, aquece o meu coração.’”
Presentemente, o paráclito é celebrado em todo o catolicismo e, inclusive, na generalidade do cristianismo. Anglicanos e metodistas dão-lhe particular ênfase, inclusive nos países anglófonos, e em nenhuma das congregações — vide as comemorações do Whitsun — os festejos se dispensam de uma dimensão lúdica e profana. O mesmo acontece em Portugal, onde, além de Tomar e Alenquer, a devoção é praticada com fervor, por exemplo, na região de Pombal. A aldeia do Penedo, em Sintra, recuperou pouco antes da pandemia festejos do divino interrompidos há mais de uma década. E na Meia Via, por sinal o palco da adoração à santa da Ladeira, o Espírito Santo não só é festejado com paixão, como preside a várias obras de caridade.
Muitos dos investigadores, académicos e curiosos que, a nível nacional, se têm interessado pelo fenómeno não são propriamente pneumatologistas, antes aproximando-se dele por razões esotéricas, se não ocultistas. É frequente vê-lo cruzado com outros sinais do milenarismo joaquimista, do messianismo judaico às chamadas profecias portuguesas, incluindo o ‘milagre de Ourique’, as “Trovas de Bandarra” ou o próprio ‘Quinto Império’, proposto pelo pe. António Vieira (e professado por Pessoa). Como, aliás, acontece noutros lugares do mundo, em que a devoção se dilui por entre lendas e misticismos que, não constituindo já cristianismo, tentam responder às mesmas urgências.
Nos Açores também se tem aberto espaço a possibilidades semelhantes. Investigadores dedicados à putativa presença humana nas ilhas antes da chegada dos portugueses — ou mesmo à redescoberta da Atlântida perdida desde Homero — nunca deixam de invocar o triunfo do Espírito Santo como demonstração da diferente genética do povo ilhéu. Mas o que impressiona, verdadeiramente, é o culto regular do divino, que volta a atingir o seu zénite este fim de semana, depois de dois anos de condicionamentos radicais — e que na maior parte dos lugares se prolongará ao longo de nove dias (entre o Pentecostes e a segunda-feira da Trindade), mas em alguns casos durará até ao início do outono.
No centro das celebrações estarão os célebres impérios, os pitorescos templos das irmandades. E só os números já são impressionantes. São Miguel, a ilha maior, tem apenas seis, tantos quanto as Flores. O Corvo, minúsculo, tem um só e Santa Maria, no extremo leste do arquipélago, dois, de resto atípicos. Mas a pequena Graciosa já tem 15, correspondentes a outras tantas irmandades. São Jorge tem 17. O Pico, 30. O Faial, 38. E a Terceira, com a (apesar de tudo) módica população de 55 mil habitantes, o fabuloso número de 82 — todos diferentes e irrepetíveis, na arquitetura e nas cores, mas representantes de uma só coleção a que se esforçam por pertencer.
Não há duas irmandades que funcionem exatamente da mesma maneira, mas no essencial cada uma delas assenta num número de irmãos inscritos por motu proprio e aceites por consenso, todos iguais em direitos e deveres; no sorteio que estes promovem para a seleção de imperadores e/ou mordomos, cargos rotativos a cujos titulares cabe a organização das festas a cada temporada (e, quanto a hierarquias, é quanto basta); e em todo o lado são manipulados e ostentados os mesmos objetos de celebração, em especial a coroa, o ceptro, o orbe, a bandeira e as varas.
A sequência ritualística passa pelas Alumiações, misto de veneração das insígnias do divino e de convívio popular, em que se canta o ‘Pezinho’ ao mordomo e às pessoas que fazem oferendas ao Espírito Santo. Inclui o sacrifício do gado com vista aos bodos que, no domingo, os mordomos oferecerão aos convidados. Passa pelos cortejos e pelas procissões, algumas das quais vão a casa do mordomo buscar a coroa, o ceptro e o orbe, depois transportados para a igreja — onde se realizarão as coroações — por jovens vestidas de branco (e portanto puras, inocentes, como o rei do mundo foi uma criança). E tem como pontos altos diferentes refeições, dádivas e distribuições de alimentos às populações — nomeadamente (dantes) o milho e o trigo, como é próprio das culturas agrárias, e (hoje) o pão, a carne e o vinho, as sopas e a alcatra, os bolos de massa sovada, as rosquilhas e/ou o alfenim, tantos deles misturando sabores acolhidos de diferentes geografias e civilizações, e frequentemente o doce com o salgado.
Toda a gente trabalha de borla (como toda a gente come de borla, porque o espírito verga a matéria), e poucas vezes a dedicação não é maior do que aquela que dá à profissão. E isto sem falar nas touradas à corda, manifestação mais do que profana que, na Terceira (e, em menor escala, em São Jorge e na Graciosa), obteve um lugar nos festejos. Chegam a realizar-se quase três centenas por ano, entre maio e outubro, e a maior parte integra as festas do bodo. O touro não é ferido, antes fere — há gerações que os vídeos com marradas fazem as delícias dos turistas —, e o gáudio tem tal significado que, proibidas as corridas em função da covid-19, se temeu que a economia terceirense afundasse duas vezes mais fundo do que as outras.
Como poderia um culto desta têmpera, e para mais desta compleição, não moldar a personalidade de todo um povo? Os açorianos são o Espírito Santo, mais até do que os vulcões, os terramotos e os vendavais. E isso é pelo menos tão evidente — talvez mais — nas terras para onde emigraram como nas ilhas. Estacionadas no arquipélago, as naus do Brasil e da Índia não tardavam a integrar o culto, apressando-se a eleger um imperador para a festa de Pentecostes. No século XVIII, em pleno fluxo migratório dos Açores para o Brasil, já a fé se praticava no Rio de Janeiro, na Baía e nas zonas de colonização açoriana de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Pernambuco. No século XIX, foi levada não só para o Massachusetts e a Califórnia, mas para a Bermuda e o Havai.
Hoje, continua a existir em quase todos esses lugares. E, porque um povo é sempre mais igual a si mesmo à distância, mantém neles tradições que até já se praticam menos nas ilhas. Ainda não há muitos anos, de passagem pelo Rhode Island, estive a ouvir os desabafos de uma jovem luso-americana, emigrante de segunda geração, que voou para as ilhas para participar na festa do império do pai e, instituída mordoma, deu por si indignada com o facto de os colegas de comissão não terem programado uma briança. “Nem sequer sabiam enfeitar um bezerro. Ainda tive que lhes ensinar!”, repetia, no seu sotaque desconcertante e encantador.
E a verdade é que, antes e depois de ser religiosa, a maneira como o Espírito Santo define os açorianos é política. Em especial os do dito grupo central, e exemplarmente os da Terceira. Basta olhar para a famosa gravura de Jan Huygen van Linschoten, flamengo nascido na ilha, e que ainda no século XVI (1595) desenhou a primeira carta geográfica dela: já lá estão os cerrados, a quadrícula verde e negra que continua a marcar a paisagem, denunciando uma vocação precoce para o emparcelamento e a partilha da propriedade. Basta lembrar a ‘justiça da noite’, a tradição miliciana formada no século XIX (e que durou até depois do 25 de Abril, já centrada nos costumes) pelos camponeses que de dia erguiam os muros com que os latifundiários reclamavam a posse dos baldios, de acordo com o decreto régio, e de noite vestiam capuzes para os irem derrubar, pois era ali que iam buscar lenha ou levar o gado doméstico a pastar.
Terceirenses, mas também (em diferentes graus) graciosenses, jorgenses, picoenses, faialenses: os açorianos da região central do arquipélago, para se caracterizarem genericamente, são horizontais, libertários, irresistivelmente subversivos, e também por isso bastante passionais, amiúde vaidosos, quase sempre dados às artes. Thomas More teria gostado de conhecê-los. Não há família em que não nasça um músico, um escritor ou um artista de palco. Quase toda a gente pratica algum género de abstração, ou pelo menos de reordenação do mundo. E nada se diz, no falar da Terceira (supremo exemplo, mais uma vez), sem uma nota de emoção, quando não de chantagem.
É o culto do indivíduo por excelência — contra qualquer género de reverência. E toda a gente “tem o direito»”, sejam quais forem as circunstâncias. Há uns tempos, enquanto anfitrião de um evento literário em que recebia uma série de escritores de renome, tive de dirimir um burburinho na plateia provocado por uma senhora (e uma série de amigas) que havia imprimido poesias de amor numa chancela de autopublicação e também tinha o direito de dar uma entrevista. As histórias que guardo de como a iconoclastia local pode subverter a sentido das proporções, e por isso também coartar a mundividência, são incontáveis.
Por mim, não consigo dissociá-lo dessa exuberante presunção de que, na nossa terra, o Espírito Santo — no fundo, Deus — vê a telenovela connosco. Todos os anos, ao circular entre as casas dos imperadores, dos mordomos e dos irmãos a laurear, a coroa do divino é deixada para veneração nas salas de estar e nos próprios corredores, os mesmos lugares onde as famílias comem, saúdam, discutem as suas chatices e/ou se sentam a ver televisão. Mais nivelamento era difícil.
Comparada, São Miguel (se entendida, mais uma vez, de um modo geral) não será tão republicana. A sociedade é mais estratificada, o conservadorismo menos refutável e o povo muitas vezes servil — de tal modo que, quando tomou posse como presidente inaugural do governo regional, em 1976, João Bosco Mota Amaral teve de propor legislação para contrariar normas tácitas e práticas sociais micaelenses herdadas do próprio tempo do morgadio. Não por acaso, a grande devoção da ilha é o Senhor Santo Cristo dos Milagres, totalmente vertical e penitente. E onde os terceirenses são hospitaleiros, mas também infiéis, os originários de São Miguel parecem muitas vezes desconfiados, ou pelo menos austeros — embora, passado o tempo necessário, eterna e caninamente amigos.
De resto, se algum deles dá sinais de ganhar o duelo, é, mais uma vez, o divino. Ainda há semanas o Santuário do Senhor Santo Cristo quis impedir que as celebrações deste ano incluíssem as manifestações profanas que haviam passado a integrá-las, decretando o Campo de São Francisco, em Ponta Delgada, como “espaço livre para o culto” (e, portanto, isento de tascas ou feiras). A pressão popular cresceu tanto que a ordem caiu, como se o Santo Cristo fosse, ele próprio, cada vez mais devoto do Espírito Santo. O que parece comprovar a acuidade da decisão — em vigor desde 1980 — de instituir a segunda-feira do Espírito Santo (ou segunda-feira do bodo, ou ‘dia da pombinha’) como dia da região autónoma.
Agora que olho para trás, à distância destes dez anos de regresso a casa, não me custa perceber que quase todas as decisões com que me fui moldando, antes e depois disso (as decisões boas, as decisões más e as decisões desastrosas, além da miríade de automatismos que não chegaram a ser nenhuma das três), vieram daí também. Ateu convicto, paradoxalmente criado protestante, sinto-me também — supremo paradoxo — católico e filho do Espírito Santo, e não apenas de um ponto de vista (passe a ligeireza) “cultural”. Ali aprendi a encontrar, além de tudo o mais, a verdadeira consagração dos ideais da revolução francesa — tanto quanto o mito do ‘bom selvagem’, de Rousseau —, formulados e praticados muito avant la lettre. E que estes tenham vivido até hoje, tão para lá das ideologias do século XX, parece-me agora a suprema redenção.
O meu único lamento, na verdade o último, é que nem o divino tenha conseguido livrar-nos da pobreza, incluindo todos os mais deploráveis índices de subdesenvolvimento humano do país, em vários aspetos da União Europeia. Mas pode ser que também essa preocupação ele me apazigue. Aparentemente, apaziguou-a em todos os demais.
(Joel Neto – Semanário Expresso de 03/06/2022)
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