in memoriam SÁ COUTO O marginal ameno Crónica: Sá Couto

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NUNO COSTA SANTOS EM SÁBADO ESCREVE

O marginal ameno

Crónica: Sá Couto

http://www.sabado.pt/Opiniao/Nuno-Costa-Santos/Sa-Couto.aspx

Ser professor é uma vocação rara. Tive poucos. Um professor não é aquele que se limita a cumprir o programa. O professor é aquele que inspira. Aquele que dá vontade aos alunos de saber mais. Semeia o desejo de abrir os manuais em casa, nos transportes públicos, nos cafés. Quando fala não fala só para um: vai olhando cada um dos rostos que tem à frente. Não faz distinções nessa comunicação. Mesmo o ausente – o apaixonado, o distraído, o desinteressado – é olhado nos olhos pelo professor.

Morreu na semana passada o meu professor de Filosofia do liceu. Era chamado de “Sá Couto”. Isso já queria dizer alguma coisa. Não era um título académico. Era dois apelidos. Alguém de quem se falava, alguém com quem se podia falar. Mesmo que não fosse o santo que fica sempre bem consagrar nas elegias. Tinha o seu feitio, os seus humores, as suas embirrações. Esqueci-me de acrescentar: um professor é um homem, capaz de injustiças. Volto a um tópico que já registei em crónica anterior: Sá Couto, o professor, inspirou-me com um gesto breve, que não esqueço. Não, não se dirigiu, nesse movimento, à minha cronística pessoa. Dirigiu-se à turma. No fim de uma das aulas, deixou em cima da sua mesa livros de poemas de Nietzsche e Goethe, acompanhados de um bilhete verbal: quem quisesse que os levasse para ler. Nada tinham a ver com a matéria dada. Quem quisesse que se inspirasse. Aproveitei. E inspirei-me. Ficam-me outras memórias dele. A sua atenção, por vezes brusca, para com os deslizes de português dos alunos, ditos e escritos. Uma atitude que passados uns anos todos agradecem. A sua exigência com quem considerava que os testes de Filosofia no 12.º ano eram pretextos para deixar fluir a imaginação adolescente. “É algo que já não se compadece com esta fase”, lembro-me de dizer. Qualquer devaneio devia partir do conhecimento concreto do pensamento de Kant e Descartes. A sua sátira constante no planeta das redes sociais. A sua pulsão para, em comentários ora serenos ora bruscos (cá está) e provocadores, acrescentar alguma nota aos escritos internéticos. O abraço num reencontro há cerca de dois anos na Escola Secundária Antero de Quental durante a rodagem de um filme sobre um regresso à ilha de São Miguel. A sua voz não era a mesma – tinha a marca de uma doença – mas o riso estava reforçado, aberto, satisfeito. Adeus, professor. Adeus, Sá Couto.