O que se passou na semana passada no território continental de Portugal, e mais concretamente na cidade do Porto, com a “invasão inglesa” para a final da Liga dos Campeões e a completa incapacidade portuguesa de afirmação nacional, é o retrato vivo do estado a que chegamos e uma ofensa sem classificação a todos quantos, de uma forma ou outra, se sentem marcados na vida por este ano e meio de luto, doença e sacrifício. Ofensa que se estende a quantos, heroica e abnegadamente, têm estado na linha da frente, no combate à pandemia e que agora são ignominiosamente escarnecidos por esses comportamentos e pela falta de pulso nacional.
Meia dúzia de horas de festejos desportivos dos adeptos do Sporting Clube de Portugal que, compreensivelmente, “romperam o dique” para muito justamente celebrarem um título que escapava há anos, deram brado em todo o país e até no estrangeiro, com comentários e condenações até do próprio Presidente da República. Duas semanas depois, o inimaginável acontece, num grau incomparavelmente mais grave e com consequências que só mais tarde se conhecerão.
E não estamos a falar das consequências sanitárias, que destas se encarregarão os especialistas. A questão maior é a da autoridade do Estado, da igualdade de direitos e deveres e da (in)capacidade do Governo perante qualquer alteração que se dê, imprevisivelmente, no País.
Ter autorizado uma final europeia com público, uma semana depois de uma Taça de Portugal com estádio vazio e a coroar um ano em que, em todas as competições, masculinas e femininas, se andou no abre-fecha que tanto prejudicou clubes e atletas, prova bem o desnorte e a arrogância com que se decide. O espectáculo, explorado até ao limite pelos meios de comunicação social, ficará gravado, por muito tempo, na memória das gentes.
Foi uma vitória absoluta dos negacionistas e uma desautorização a quantos com saber e dedicação têm conduzido todo este processo de desconfinamento. No ar fica a nítida impressão que o país cedeu e preferiu a onda populista das pressões nas redes sociais e dos comentadores televisivos à segurança das autoridades médicas e científicas, o que não admira perante a horda daqueles que sabem tudo e sobre tudo opinam.
Tanto assim é que aqueles que sabem verdadeiramente do que falam e que têm a autoridade do estudo e da formação, por vezes, não têm outro remédio que não seja calar-se perante a ignorância que potencia o atrevimento e que se espalha com velocidade superior à do vento numa avalanche de irresponsabilidade nunca vista.
Depois do que se passou no Porto, na passada semana, é tempo de começarmos a pensar na época “pós-democracia” que já estamos a viver. Em democracia, o governo sai do povo, mas é administrado por pessoas e instituições, cujas decisões devem ser respeitadas e acatadas até nova escolha eleitoral.
Agora, com os novos tempos e meios de comunicar, quem governa, quem manda e tem o destino das pessoas nas mãos é quem tem capacidade de criar grupos de pressão que condicionam e amedrontam qualquer governante ou autoridade.
A incapacidade policial que agora vimos, o medo de que qualquer gesto de força fosse tomado por atitude xenófoba, o receio que qualquer medida pudesse prejudicar negócios e turismo, fez passar para plano inferior a dignidade de quantos se sentem injustiçados e tratados de forma desigual.
A criação de “bolhas” ofendeu os moradores, mas acima de tudo doeu àqueles que não acompanharam os seus mortos à sua última morada, que não visitam os seus familiares em lares e hospitais ou que viram e vêem os seus filhos sem ensino presencial.
E tudo isto vai passar sem consequências políticas? Descemos já assim tanto? Ou está na hora (usando a expressão desportiva) de deitar a toalha ao chão e aceitar que somos ingovernáveis?
Tudo leva a crer que sim!