VOTAR, PANDEMIA, INCOMPETÊNCIAS….MEU TÍTULO (LIBERDADE, CULPA E OMISSÕES PEDRO GOMES)

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LIBERDADE, CULPA E OMISSÕES
1. A discussão sobre o exercício do direito de voto, por parte de cidadãos sujeitos a isolamento profiláctico, está a ser feita como se não tivesse havido dia de ontem, isto é, como se a Assembleia da República não tivesse feito alterações à Lei Eleitoral que regula as eleições legislativas, sob proposta do PS, ignorando uma questão mais do que previsível. Se é verdade que na altura não era possível antecipar a propagação galopante da Covid-19, em resultado de uma nova variante, não é menos verdade que era razoável supor que ainda estaríamos em pandemia e essa situação afectaria o exercício do direito de voto por cidadãos sujeitos a isolamento. A Assembleia da República foi incompetente e os Deputados estiveram distraídos.
A eleição de titulares de órgãos de soberania (como a Assembleia da República) inclui-se na reserva absoluta de competência legislativa do parlamento, o que impede o Governo de legislar sobre o modo de exercício do direito de voto, incluindo o horário de abertura e de encerramento das secções de voto. O direito de voto é um direito fundamental, de natureza política, constitucionalmente consagrado, que não pode ser afastado por decisões de natureza administrativa, tomadas durante um estado de excepção administrativa – como aquele em que vivemos.
2. Voltamos a estar perante um conflito entre direitos: o direito de sufrágio (isto é, o direito de, através do voto, cos cidadãos elegerem os Deputados à Assembleia da República, neste caso concreto) e o direito à saúde pública e à sua protecção, que também constitui um dever do Estado. A protecção da saúde pública é efectuada – entre outras medidas – pela imposição de isolamento dos infectados pela COVID-19, por um período de 5 dias, determinada pela Autoridade de Saúde e não sujeita a qualquer tipo de confirmação de natureza judicial. Esta determinação de isolamento é tomada com fundamento em acto de natureza regulamentar – as diversas Resoluções do Conselho de Ministros que impõem a medida de isolamento ou, no caso das Regiões Autónomas, através de Decreto Regulamentar ou Resolução do Conselho do Governo Regional, com a mesma finalidade.
Os actos administrativos tomados pela Autoridade de Saúde, com base em actos regulamentares não podem afastar o direito fundamental de exercício do voto, constitucionalmente consagrado (artigo 49º da Constituição) e que deve prevalecer.
3. O Governo, porque também se esqueceu deste problema e não apresentou à Assembleia da República um proposta de Lei, pediu – de modo apressado e envergonhado – um parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República que, não tenho dúvidas, defenderá a possibilidade dos cidadãos poderem quebrar o isolamento para exercício do direito de voto. O pedido de parecer parece-me inútil, pois o que o Governo da República deve fazer é assegurar a disponibilização de meios de segurança acrescidos (máscaras, desinfectante e recursos humanos para a higienização) nas secções de voto, com zonas de voto dedicadas a quem esteja em isolamento, garantindo-se um modo de circulação que impeça o cruzamento dos eleitores. Para além disso, a ideia de estabelecer um horário para que os cidadãos em isolamento possam votar, limita o exercício do direito de voto, comprimindo-o de um modo constitucionalmente não permitido, pois violaria a reserva absoluta de competência da Assembleia da República e o princípio da igualdade.
(Publicado a 12 de Janeiro de 2022, no Açoriano Oriental)
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