Vitorino Nemésio. A variedade prodigiosa

Quis ser padre, militar, marinheiro, médico. Acabou por se realizar como professor de estonteantes derivas e escritor de pessoalíssima voz e inúmeros registos. O popular e o erudito, o coloquial e o reflexivo, o tradicional e o arrojado convivem na sua escrita em boa vizinhança. Recordamos Vitorino Nemésio nos 115 anos do seu nascimento. e Quis ser padre, militar, marinheiro, médico. Acabou por se realizar como professor de estonteantes derivas e escritor de pessoalíssima voz e inúmeros registos. O popular e o erudito, o coloquial e o reflexivo, o tradicional e o arrojado convivem na sua escrita em boa vizinhança. Recordamos Vitorino Nemésio nos 115 anos do seu nascimento. &etilde;

Fonte: Vitorino Nemésio. A variedade prodigiosa

Vitorino Nemésio. A variedade prodigiosa

TERESA CARVALHO19/12/2016 12:28

Quis ser padre, militar, marinheiro, médico. Acabou por se realizar como professor de estonteantes derivas e escritor de pessoalíssima voz e inúmeros registos. O popular e o erudito, o coloquial e o reflexivo, o tradicional e o arrojado convivem na sua escrita em boa vizinhança. Recordamos Vitorino Nemésio nos 115 anos do seu nascimento.

“Cruel como os Assírios, / Lânguido como os Persas,/ Entre estrelas e círios/ Cristão só nas conversas.// Árabe no sossego,/ Africano no ardor; / No corpo, Grego, Grego! / Homem seja onde for.// Romano na ambição,/ Oriental no ardil,/ Latino na paixão,/ Europeu por subtil” (“Retrato”). Eis os traços que compõem o puzzle de uma personalidade complexa e diversa, como evidencia o inventário dos géneros praticados: a poesia – de filões e tonalidades diversas, por vezes mesmo contrastantes –, o romance, o conto, a biografia, a historiografia, o ensaio, a crítica literária, a crónica, o relato de viagens, a epistolografia, a reflexão filológica marcada pelo rigor da erudição e pela amplitude da cultura humanística.

A síntese do seu saber fê-la ele próprio com inteiro acerto: “Cheguei a pensar em escrever eu mesmo a minha fábula, que seria o Rouxinol e o Mocho (…), pois já nos bons tempos de Coimbra eu era, entre os sábios aquiescentes, um poeta extraviado, entre os poetas maliciosos, um sábio enganado no número da porta.” Figura ímpar da cultura e da literatura portuguesas do século XX, Vitorino Nemésio preparou-se para o que desse e viesse: “estudei de tudo e o mais que podia. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do Verão propício ao Inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no Inverno e cantei sempre.”

Nascido na Praia da Vitória, na Ilha Terceira, é o principal cicerone literário dos Açores. No mapa da sua formação intelectual e do seu destino universitário e profissional figuram lugares vários: Angra do Heroísmo, para frequentar o liceu em 1912, o ano das primeiras tentativas literárias, seguidas de perto pela estreia em livro com apenas 15 anos: Canto Matinal (1916), “um livrito não propriamente precoce, senão precipitado”; Coimbra, onde se instala em 1921, inscrevendo-se no curso de Direito e dando início a uma actividade cultural organizada que lhe permite afirmar-se como universitário e homem de Letras; Lisboa, cidade onde, optando definitivamente pelo curso de Filologia Românica, se licencia com alta classificação. Ali, tem início a sua carreira académica na Faculdade de Letras, de que chegaria a ser director, pronunciando a sua última lição em 1971: «Até à vista!». Mas existem outros pontos significativos da sua itinerância intelectual e profissional: Montpellier, onde publica o livro de poemas La Voyelle Promise (1935), Bruxelas, a conduzi-lo à descoberta de um novo mundo cultural e científico, o Brasil – lugar de visita frequente e alargada.

O autor de O Pão e a Culpa (1955), bem conhecido também pelos seus medos aéreos, só voltará aos Açores em duas viagens de que dá conta o volume de crónicas Corsário das Ilhas (1956), numa mescla de registos discursivos a oscilar entre a autobiografia e a crónica de viagem. De 1946 data o “primeiro corso”, já depois de Mau Tempo no Canal (1944), esse romance ímpar que, aliando à epopeia moderna o regionalismo mítico, veio desarrumar o espaço e o tempo romanesco clássicos. 1955 é o ano do “segundo corso”, ia já em fase avançada a sua vasta obra de polígrafo, sempre guiada pelos desafios do mistério, com outros marcos a destacá-la, como a recolha de contos Paço do Milhafre (1924), o monumental ensaio A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio (1924) ou o livro de poemas O Bicho Harmonioso (1938). Os poemas de Limite de Idade (1972), o acordar vespertino de Vitorino Nemésio para as matérias científicas, são a expressão perfeita do casamento da ciência com a imaginação. De referir ainda o “Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga”, essa colectânea de exaltados poemas de amor, postumamente publicada.

A poesia não se reduz neste intelectual de tão vasta e diversificada bagagem cultural à produção em verso, desde cedo avessa a escolas e a etiquetas simplificadoras. O poeta excepcional, muito provavelmente o mais plural e variado do século passado, revela-se igualmente em volumes de prosa que representam uma fatia substancial da sua obra: na colectânea de intervenções radiofónicas Ondas Médias, em O Segredo de Ouro Preto e Outros Caminhos ou Viagens ao Pé da Porta, mas também nessa “espécie de periódico pessoal hospedado em folhas alheias” que é o Jornal do Observador.

Como autor e apresentador do célebre programa televisivo “Se Bem Me Lembro», uma cátedra com auditório nacional, Vitorino Nemésio cativou o grande público com a sua presença de comunicador nato, o seu famoso espírito digressivo e a sua memória prodigiosa. O seu rosto, enquadrado na moldura da televisão, permanece na memória colectiva.

«A VITORINO NEMÉSIO,
ALGUNS ANOS DEPOIS

(Eugénio de Andrade)

Ninguém te lê os versos, tão admiráveis
alguns, e a prosa não tem muitos leitores,
embora todos reconheçam, mesmo os que
nunca te leram, que é magnífica.
A moda é o Pessoa, coitado: dá para tudo;
e a culpa é dele, com aquela comovente
incapacidade para ser ele próprio.
De nada lhe serviu ter dito e redito
que a fama era para as actrizes.
Que vocação de carneiro têm as maiorias:
não há fúfia universitária ou machão
fardado que não diga que a pátria
é a língua ou a puta que os pariu.
Não, contigo, isso não pegou. Durante anos
e anos arrumaram-te na prateleira:
eras o Cavaleiro das Tristes Figuras.
Conversão ao catolicismo, fretes ao estado
novo, prémios do sni não ajudavam muito
a que te lessem, além de haver outros poetas
a festejar, por sinal bem medíocres, mas
«democratas
convictos», coisa que dizem que não foste.
Isto de morrer pela pátria não é para
todos e tu, decididamente, para a morte
não tinhas nenhuma inclinação. Afinal,
além dos alciões a quem davas os olhos,
só tinhas versos, e alguns bem maus,
coisa aliás de pequeníssima importância,
como exemplarmente, depois de morto, provou
Pessoa, que está, como se sabe, no paraíso.
Coitado, pensava ter tempo para pôr ordem
na arca, mas a morte veio antes da hora.
Contigo ao menos isso não aconteceu,
bebias menos, pudeste arrumar a casa.

Nada disto importa já, e de resto
que lêem esses que lêem quando lêem?»