VICENTE JORGE SILVA, O PÚBLICO E AS REVELAÇÕES DE JOAQUIM VIEIRA

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A morte do Vicente Jorge Silva, que muito lamento, suscita-me a revelação de uma passagem do meu livro “O ‘Público’ em Privado”, que escrevi a convite a direção do jornal para assinalar o seu vigésimo aniversário mas que os responsáveis não quiseram publicar (não me perguntem porquê, porque nunca me adiantaram razões). Já aqui publiquei em tempos o capítulo sobre a fundação do “Público” e a influência do Vicente no projeto, pelo que agora vos deixo o relato da demissão dele como diretor:
«Ao fim de sete anos de envolvimento no projeto Público, Vicente era acometido por um novo seven year itch. Desta vez a sua inquietação expressar-se-ia não no jornalismo mas – adequadamente – no cinema, não à maneira de um Billy Wilder, mas à portuguesa moderna, ou antes, à madeirense, já que o autor nunca foi homem de esconder as raízes. Na sua antiga urgência de realizar uma longa-metragem, Vicente parecia a incarnação de Jean-Luc Godard no início de Tout va bien: “Je veux faire un film” (“Quero fazer um filme”). Essa vontade indómita foi por fim caucionada pela aprovação de um projeto de película pelo instituto estatal do cinema. Para a sua concretização, o diretor do Público foi buscar o escritor, poeta e guionista italiano Tonino Guerra, que trabalhara com Michelangelo Antonioni no argumento das suas películas mais marcantes, mas também com Federico Fellini, Vittorio De Sica, Mario Monicelli, Theo Angelopoulos, Andrei Tarkovsky e Francesco Rosi. Se o Público, em termos de alianças, visava o melhor que havia no jornalismo europeu, Vicente não o quis fazer por menos no terreno cinematográfico. Antonioni era tão só a sua máxima referência cinéfila. Paulo Branco aceitou produzir a fita, que se chamaria Porto Santo – o cenário natural da história e eterno local de vilegiatura vicentina –, e o realizador arregimentou ainda Torcato Sepúlveda para uma escrita do guião a seis mãos […].
Nada indica que Vicente tivesse planos para abandonar, mesmo que temporariamente, a direção do Público com o fim de assegurar a concretização do filme. Mas nisso podia haver um problema, já que dirigir uma longa-metragem, seja em Hollywood ou nas deficientes condições de produção nacional, implica sempre um período mais ou menos demorado de entrega absoluta, em clima de enorme tensão criativa, incompatível com as obrigações quotidianas do diretor de um diário. Henrique Cayatte relata ter aconselhado a Vicente uma pausa no jornal: “Já havíamos passado a fase heroica do Público. O Vicente estava cansado, notava-se a lassidão da sua parte, e aconselhei-o a tirar uma sabática. Propus-lhe: ‘Vais ao Belmiro dizer que suspendes a atividade por uns tempos, o teu nome continua no jornal, sais, vais fazer o filme, não recebes um tostão do Público e depois avalias se continuas ou não’.”
Não foi o caminho seguido, e segundo José Manuel Fernandes os resultados estiveram à vista: “O Vicente teve o filme e isso prejudicou o trabalho de direção.” O administrador José Marquitos confirma que a cabeça do fundador do jornal estava noutro lado: “O Vicente nunca descurou a área editorial do Público, mas sendo um homem de paixões ficou verdadeiramente entusiasmado com o filme. Já tinha elaborado o guião e estava a tratar da produção com o Paulo Branco.”
Quem não apreciou a brincadeira foi Belmiro: “O Vicente adotou uma coisa ridícula, e isso é que me irritou, é que ele esteve um ano a receber no Público e a trabalhar lá para a porcaria do filme que estava a fazer. Isso é contra os valores da Sonae. Ele ficou com o modus vivendi do Expresso [de onde viera]. Depois houve pessoas que na contabilidade começaram a receber faturas um bocado estranhas e começaram a chamar a atenção, e as faturas eram devolvidas e ele tinha de as pagar. Não foi mais nada.”
Ninguém, a começar pelo próprio Belmiro, se mostra muito à vontade para falar no problema sempre ambíguo das despesas de representação num órgão de informação. Mas Vicente rejeita que tenha tido tão prolongada ausência: “Assumo que o filme era uma escapatória para a tensão do jornal, mas não é verdade que eu tenha estado um ano ausente.” Jorge Wemans reforça, em socorro do seu colega de direção: “Não houve uma ausência tão prolongada do Vicente. Esteve 15 dias em Itália, tirados às férias, e teve uma licença de dois meses para filmar. Mas geriu mal a questão do filme, porque falava nisso a toda a gente.” Outros jornalistas, elementos do secretariado da redação e até membros da direção assumem no entanto que o exílio cinematográfico do diretor foi bem mais prolongado.
O arrebatamento fílmico de Vicente era porém apenas parte menor de um problema que não existiria com contas positivas no Público. Havia António Pinto de Sousa a morder nas canelas dos jornalistas, exigindo resultados que até então não fora possível produzir. “Pinto de Sousa era o homem da Sonae a quem o grupo entregava a missão Público”, explica Marquitos sobre as razões que levavam o novo presidente do conselho geral a querer cortar a direito nos custos. “Eles tinham a consciência de que era um bulldozer a entrar por ali adentro.” José Queirós recorre à mesma terminologia: “Belmiro mandou Pinto de Sousa como enviado de missão para resolver o problema do jornal.” Apesar disso, Vicente ainda esteve convencido, nos primeiros tempos, de que as ações iniciais de Pinto de Sousa, que não tinha anterior experiência em empresas de comunicação, se deviam apenas a um estilo pessoal de ação, dura e inflexível, e não ao cumprimento de uma diretiva superior: “Eu pensava que aquilo era dele, mas afinal era do Belmiro. O Pinto de Sousa disse-nos: ‘Vocês estão convencidos de que eu sou aqui o sacana, mas não sabem quem é o Belmiro’. Ele, que tinha sido da extrema-esquerda no pós-25 de Abril, na verdade era contra o Público. Até me disse uma vez: ‘Você, que fez o Comércio do Funchal, por que é que quer fazer esta coisa?’”
O “sacana” era, para José Vítor Malheiros, “intratável, malcriado e violentíssimo: entrou ali de botas cardadas”. E porquê? “Cortar nas despesas só é o que qualquer atrasado mental consegue. Mas ele não percebia nada do negócio. Não houve aliás um único gestor no jornal que percebesse do negócio. Nenhum fez formação nesta área.”
A medida porventura mais controversa que Pinto de Sousa procurou introduzir terá sido uma avaliação do grau de rendibilidade dos jornalistas através da medição do número de carateres que cada um deles havia escrito e publicado ao fim do mês. Malheiros (que julga ter sido Montenegro Soares, também à época na administração do jornal, a querer avançar com a ideia – pela qual, de qualquer modo, o outro recolheu a fama) via um anacronismo no novo método de gestão: “Os jornalistas tinham de ter horários e estar sentados à secretária. O modelo de produção industrial aqui não se aplicava, mas querem impô-lo em todo o lado.”
Belmiro jura não compreender a indignação e repulsa que a medida causou no seio da redação: “As pessoas achavam que era um insulto, que o controlo era uma coisa tola, quer dizer, que a qualidade de um jornalista não se avalia a peso, isto é, em número de carateres. Então em que é que se avalia? A maior parte dos jornalistas, que eram os mais fracos naquela altura, é que faziam os textos não assinados, e portanto toda aquela gente estava debaixo do chapéu dos textos não assinados. Eram todos.” E confirma o epíteto atribuído na redação de Lisboa: “Chamavam por isso a Pinto de Sousa o sargento de botas cardadas.”
Embora tivesse abandonado a administração do jornal em setembro de 1996, Marquitos já apanhou o início dessa agitação: “Ainda assisti à parte de medir o aproveitamento dos jornalistas. Quando eu saí aquilo estava uma grande baralhada com o Vicente e o Wemans.”
A “baralhada” resultava de outra iniciativa aplicada por Pinto de Sousa com conhecimento e caução da holding: a encomenda a consultores estrangeiros de definição de um modelo economicamente viável para o Público. “Começámos a recorrer a consultores externos”, testemunha Wemans. “Os primeiros foram a Arthur Anderson. A Sonae nem lhes pagou.” Ao que parece a duvidosa qualidade do estudo não permitiu sequer a apresentação de uma fatura pelo trabalho efetuado.
Prossegue o diretor-adjunto de então: “Foi-se de barraca em barraca, com todos os consultores. Por fim vieram os que tinham feito as mudanças em The Scotsman, um jornal regional britânico. Era ridículo: ‘É não perceber onde estamos’, dissemos. ‘Se é isto que a Sonae quer, um jornal regional, o downsizing completo, então não estamos a pensar na mesma coisa. Nessa altura é que coisas se estragaram entre nós.” Vicente revive a perplexidade que o terá assaltado: “Porquê The Scotsman? Era um jornal regional. Não era um bom exemplo. Não fazia sentido.”
O presidente da Sonae decide envolver-se no processo de saneamento financeiro, segundo Queirós: “Belmiro começa por ser ele a pegar no jornal. Quer mandar-nos para a Escócia. Somos muito pressionados por especialistas que vai buscar ao estrangeiro, mas que na minha opinião sabiam menos do que nós. Ele achava, por exemplo, que a ideia dos copidesques era perfeitamente tonta, que os jornalistas por definição sabiam escrever. Desentendi-me com ele por causa disso. O ambiente começou a degradar-se, cresce muito a tensão.”
“Os jornalistas reagiram muito mal à consultoria dos que tinham feito o trabalho para The Scotsman porque advogavam cortes cegos”, recapitula Marquitos. “Gera-se um mal-estar generalizado. Quem gere essa crise é Pinto de Sousa, com o Luís Ribeiro à frente da administração do jornal.”
A ofensiva lançada a partir da Maia [sede do grupo Sonae] assinala o fim da esperança em os jornalistas assumirem o papel de administradores, pelo menos segundo as linhas programáticas do grupo. “Belmiro queria no fundo que os jornalistas fossem gestores e nós não quisemos”, constata Queirós, reconhecendo que “havia uma grande pressão nesse sentido.” Nota ainda que os jornalistas, quando sentiram o calor dessa pressão, quiseram emendar a mão: “O Wemans tentou esse ‘golpe’, nós assumimos o desafio. Ele, o Vicente e o Joaquim Fidalgo, que durante muito tempo disseram que a gestão não era com eles (o principal erro que cometeram, o qual eu já sentia antes mas estava agora mais elaborado nas nossas mentes), são sobretudo os três que falam com a Sonae e Belmiro e os chamam para decisões mais editoriais. Tentam fazer o que não fizeram antes. Mas já era tarde.”
Fernandes repara que “o Wemans era na altura quase só administrador e o Joaquim Fidalgo também” e revela: “O Wemans propõe uma descida dos salários em 10 por cento, senão o jornal não vai aguentar-se, mas a medida não vai para a frente.” Por seu lado, o diretor do Porto admite: “Nós não dávamos conta do recado em termos empresariais. Levantámos essa questão em 1994-95. Eu queria sair assim que o barco navegasse. Admitíamos até abdicar da maioria na direção empresarial – como aconteceu mais tarde. O Público tinha um drama: era uma redação do tipo do El País com tiragens do Faro de Vigo.”
Num ambiente de crispação, acumulam-se os problemas internos. Um deles é reconstituído por Fernandes: “O conselho geral dá instruções ao Vicente para acabar com o [suplemento semanal] «Pop Rock», mas ele não cumpre, e isso dura seis meses sem se aperceber bem do que tinha feito. O resto da redação opunha-se ao fim do suplemento. A relação com a Sonae já estava inquinada.”
Relata Wemans que “Belmiro promove conversas a título individual com a direcção editorial, a dizer que estava desconfortável com o jornal, preocupado em termos económicos, que era necessário um esforço para o adaptar às receitas, que os órgãos de informação independentes são os que dão lucro, que era preciso fazer alguma coisa.” O diretor-adjunto terá na resposta invocado as medidas já tomadas na redação, que dizia não serem acompanhadas pelo resto da estrutura. […] Mas há também a admissão de um problema de raiz no Público, quando, ainda segundo Wemans, os jornalistas-gestores terão desabafado a Belmiro: “Fizemos um esforço maior do que outras áreas, mas a verdade é que o jornal não tem dado rios de dinheiro, senão estávamos todos bem.”
Num diálogo mais áspero, o empresário terá sugerido a Vicente que a regra da mobilidade de gestores do grupo também poderia abranger quem estava na administração do Público, “a lógica Sonae – mexer no pessoal”, segundo José Alberto Lemos. “Quando Belmiro falou na mobilidade no interior do grupo,” relata Marquitos, “o Vicente pediu-lhe: ‘Não me ponha à frente de um supermercado’.” […]
Não seria claramente essa a vocação dos jornalistas que administravam o Público, os quais por outro lado também chegavam a um ponto de saturação talvez irreversível. Wemans explica o que estava em jogo: “Criámos o jornal numa base de confiança muito grande com o acionista, mas a operação continuava muito complicada em muitas áreas. A relação com o acionista estava degradada. Na organização da redação estavam a pagar custos da institucionalização. Evitam-se os vícios naturais de início mas era sempre hard, hard, sem perspetivas de ultrapassar as dificuldades iniciais, além de que deixámos instalar tiques que não queríamos. As pessoas não tinham compensação pelo seu esforço. Tínhamos sucesso na crítica mas não no negócio. Eu e o Vicente tínhamos a consciência de que era a altura de refundar o jornalismo do Público em função das grandes mudanças na comunicação na primeira metade dos anos 90. Mas isso implicava mais investimentos. Com o acionista há 18 meses a pressionar em sentido inverso, não tínhamos o mecanismo e o ânimo para a mudança.”
A gota de água serão os consultores, sublinha Vicente: “Os escoceses fazem um relatório final que é o contrário do que nos tinham dito no que respeita à parte editorial. Quando começam a lê-lo lá em cima [na Maia], peço para pararem. Não estou interessado em ouvir mais. O relatório escocês era absurdo. E a Sonae tinha-se portado mal connosco, estava a fazer jogo duplo. Falo depois com o Wemans e decidimos ir embora.” O nº 2 confirma o penoso efeito do duche escocês: “Com a medição da produtividade por linha e depois de mais uns consultores que propunham um jornal de bairro achámos que não valia a pena continuar.”
Retoma Vicente: “Vim-me embora por duas coisas: quando o Belmiro tenta impor o modelo The Scotsman, numa encenação a mando dele preparada com Pinto de Sousa, e devido a cansaço pessoal. Eu envolvia-me demasiado no jornal.” Wemans reitera-o: “No último ano estávamos bastante cansados. Não conseguimos ao fim de cinco anos refundar o jornalismo do Público, o que contribuiu para o cansaço.”
O demissão dos dois principais responsáveis editoriais do Público, ocorrida no início do verão de 1996, foi acompanhada por muitas conversas com os restantes membros da direção. […] Dá-se assim a demissão em bloco da direção e dos editores, se bem que Vicente faça questão de acentuar: “Eu e o Jorge Wemans é que resolvemos partir, numa decisão solidária.”
Sem deixar de reconhecer que “foi o Vicente que tomou a iniciativa”, Belmiro acha contudo que ele “foi um bocadinho empurrado” pela Sonae, porque na Maia estariam apreensivos com o “voluntarismo” do diretor, cujo estatuto, associado à sua forte personalidade, acabava por dar muito peso às atitudes que assumia na direção administrativa: “E daí depois resultou um bocadinho de divergências e um certo regresso a um estilo mais libertino e menos responsável, que teria sido algo que o Vicente nunca deixou de considerar que eram as boas práticas do Expresso. Ele próprio chegou à conclusão de que já não tinha mais condições para gerir.”
Os diretores demissionários ficam em funções até se resolver o problema da sua sucessão, conta José Manuel Fernandes: “Deu-se um prazo longo, de dois meses, durante o verão, até encontrarem uma nova direção. Mas o clima estava bastante tenso, com Pinto de Sousa a tentar fazer os cortes que queria. Até que, muito em cima da hora, o Vicente e o Jorge fazem um ultimato: nem mais um dia.”
A demissão de ambos é anunciada na última página do Público de 25 de setembro. Vicente, que não escreveu uma carta de demissão a Belmiro ou à administração do jornal, assina nessa página com Wemans uma declaração de despedida, na qual ambos informam: “Hoje deixamos de dirigir o Público. Esperando que ele continue a ser o nosso jornal.”
Para desmentir de alguma forma Belmiro sobre questões monetárias, Vicente, que entretanto se mantém ligado ao jornal como cronista, garante: “Saí do Público com um ano de ordenado, nada mais.” Sobre o seu tempo de permanência à frente do projeto, acha que não teria vantagem em continuar, porque a certa altura sobrevém o desgaste no lugar, mais do que qualquer outra coisa: “Só se devia poder ser diretor durante determinado período, como por exemplo o correspondente a uma legislatura.”»
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Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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