Vem pr’aqui, Chico(Buarque)

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Não é de agora que alguns te odeiam e voltou a repetir-se, se calhar o Brasil não te merece, Chico Buarque. Desde aqui te envio este apelo: vem para Portugal, cá te receberei de braços abertos

Fonte: Vem pr’aqui, Chico

 

Vem pr’aqui, Chico

Não é de agora que alguns te odeiam e voltou a repetir-se, se calhar o Brasil não te merece, Chico Buarque. Desde aqui te envio este apelo: vem para Portugal, cá te receberei de braços abertos

Não te deves lembrar, Chico Buarque, mas há para aí uns 20 anos fiz-te uma entrevista. Essa entrevista era sobre o teu primeiro livro (“Estorvo”), não me lembro do que falámos; tu, muito menos, imagino. Dizia isto só em jeito de introdução, mas não é sobre isso que te quero falar. Impele-me nova polémica em que te envolveram aí no Brasil, agora para te criticarem a veleidade de escrever uma letra sobre um amor arrebatador capaz de levar a deixar mulher e filhos.

Aos 73 anos, feitos em junho, com uma carreira de 55 anos, um nome gravado no melhor que a cultura popular brasileira realizou na segunda metade do século xx, com peças de teatro, uma sublime “Ópera do Malandro”, vários romances, seria de esperar que não te olhassem a criação com a mesma leveza de quem aprecia trabalho desconhecido.

Podes ser acusado de machista, de destruidor de lares, porque a letra diz “quando teu coração suplicar/ ou quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/ e de joelhos/ vou te seguir”? São as “Mulheres de Atenas” outra vez, ou pelo menos assim parece, não? Quando te atacaram por defenderes a submissão das mulheres aos homens, retirando a canção do contexto da peça de teatro para a qual foi criada e interpretando como literal algo que sempre foi destinado a ser lido de forma irónica. Isso voltou agora, essa polémica, com “Tua Cantiga”, nova canção do teu 23.o disco de originais, que sai no final deste mês.

Mais uma vez, depois de tantos anos a construir personagens para canções, teatro, romances, ninguém parece ter entendido ainda que a canção é uma obra de ficção, um poema que pode, na tua voz, expressar os pensamentos de outro. Neste caso, alguém que arrebatado fala de largar tudo por uma mulher, de a transformar no centro do seu mundo e aí a deixar.

Se formos todos literais, se interpretarmos tudo o que sai da mão dos poetas, dos compositores, dos dramaturgos, dos romancistas como autobiográfico, para que queremos a imaginação? Quer dizer que quando te ouço cantar “Sinhá” tenho de concluir que és um escravo sendo punido por alegadamente teres visto nua a senhora do engenho?

A polémica de “Tua Cantiga” é só mais uma das muitas em que te envolveram ao longo dos anos no Brasil, os muitos ódios que te perseguem, mesmo quando te manténs coerente de princípios e segues no teu apoio ao PT. E te juntas a artistas que ocuparam e recuperaram a mítica sala do Canecão (fechada e em processo de degradação) para cantar o “Apesar de Você”, que cantavas contra a ditadura militar no Brasil.

Em 2015, poucos dias antes do Natal, um grupo de antipêtistas insultou- -te na rua depois de um jantar e, insultado, atravessaste a rua para trocar argumentos com eles, mesmo com o nível baixinho da discussão: “Você é um merda”, chamaram-te.

Jô Soares, emocionado, veio em tua defesa na televisão: “O Chico Buarque não poder sair de casa e ir jantar com os amigos sem ser agredido ou ofendido, o Chico Buarque, que é um património desse país! Eu fico envergonhado.”

Desse ódio contra ti há outros rastos na internet. Tem um vídeo intitulado “A Verdade sobre Chico Buarque (ídolo criado pelo sistema)” onde te acusam de seres um poeta falso, um maior cara-de-pau e salafrário, com imagens tuas a brincar que compras as tuas canções a compositores anónimos.

Eu sei que hoje já percebeste que não és tão amado por alguns – há um vídeo teu no YouTube em que falas sobre isso e até te escangalhas a rir, porque te lembras dos comentários exagerados. “Existe uma raiva, mas que é que se vai fazer, não vamos ficar com raiva de quem tem raiva! Deixa para lá.”

Neste meu texto que já vai longo, quero mesmo dizer-te isso, Chico, não deixes para lá, anda para cá, aqui te receberemos de braços abertos. É verdade que a festa sobre a qual escreveste um dia já acabou, mas ainda somos capazes de outras festas, e no junho do Santo António, cheiro a alecrim não te vai faltar.

Lisboa está na moda, há outras estrelas internacionais com quem podes conviver – tens a bela Monica Belucci, que é capaz de inspirar uma canção, há o Eric Cantona, que não desdenhará fazer parte das tuas peladinhas semanais, e com o Marcelo Camelo e a Mallu Magalhães, sei lá, até pode dar colaboração.

Há muito sítio onde se pode conviver ao jantar – nós também somos desses de prolongar a comida por entre a conversa, o vinho e a cerveja. Além disso, ninguém te irá importunar enquanto jantas, a não ser para uma manifestação de carinho, um copo de vinho, um gesto de admiração, se calhar uma selfie – o presidente Marcelo Rebelo de Sousa não desdenhará a oportunidade. É por isso que te lanço daqui esse convite: vem pr’aqui, Chico! Não te arrependerás.

P. S. Se aceitares, manda mensagem antes para preparar o sofá e a Amarílis (que também nasceu aí e te pode contar histórias da Paraíba) colocar mais água no feijão. E me perdoe o tutear da conversa, mas é que sinto que podemos ser grandes amigos.