VALE A PENA APOIAR A UCRÂNIA?

VALE A PENA APOIAR A UCRÂNIA?
“Face à inflação galopante, ao custo astronómico da gasolina e do gasóleo, da energia, da subida dos preços dos produtos alimentares e em particular a ameaça de redução drástica do gás, são cada vez mais numerosas as vozes que se elevam contra a solidariedade face à Ucrânia, cujo preço muita gente não consegue suportar e outros simplesmente a rejeitam por motivos ideológicos ou por puro comodismo. Apesar de a União Europeia ter conseguido até agora falar a uma só voz relativamente ao apoio à Ucrânia na sua resistência à barbárie do Kremlin, não é certo que essa solidariedade continue a espelhar o sentimento maioritário das populações.
Não nego de forma nenhuma as dificuldades que, de forma diferente, já sentimos e acabaremos por sentir muito mais, nomeadamente aqueles que têm menos capacidade de resistência económica e social. Mas, a propósito, veio-me à memória um episódio relatado por Simone Veil, na sua auto-biografia Une Vie (Uma Vida).
Publicada em 2007, Simone Jacob, de seu nome de solteira, conta a sua vida e em particular como aos 17 anos foi deportada com a mãe e a irmã para Auschwitz-Birkenau em 1944. Descreve também o inferno que aí viveu, a perda da mãe no campo de Bergen-Belsen, do pai e do irmão, estes dois últimos deportados para Kaunas na Lituânia de onde nunca regressaram.
No seu regresso a França após o final da guerra, Simone escreve que, em conversa com uma vizinha, tentou contar o horror que tinha vivido. Digo tentou, porque foi rapidamente interrompida pela sua interlocutora que lhe retorquiu o quanto também sofrera com o racionamento, a falta de comida, roupas e outras coisas essenciais…
Escrevo isto não para desvalorizar o sofrimento das pessoas que viveram a guerra nas suas casas, seja em França ou noutros países ocupados na época, ou as dificuldades hoje sentidas nos diferentes países europeus em consequência da guerra desencadeada por Putin. E não desvalorizo, porque o sofrimento é sempre vivido de forma individual e por isso digno de respeito.
Mas, da mesma forma que não podemos equiparar as dores reais das populações europeias na época com o sofrimento das vítimas da Shoá, judias ou não, também sabemos que as dificuldades que grande parte dos países da UE sente, e sentirá cada vez mais, não são comparáveis à tragédia que vemos diariamente acontecer à população ucraniana, nomeadamente aquela que permanece sob uma guerra impiedosa que mata indiscriminadamente crianças e velhos, viola e tortura mulheres e homens, arrasa escolas, hospitais, habitações e património cultural. Uma guerra bárbara que tem como objectivo o apagamento da história de uma nação independente.
Devemos fechar os olhos ao que vemos diariamente, escudando-nos atrás de um muro de indiferença ou invocando uma “paz” que hoje apenas soa a uma rendição por parte do país invadido? Analisando o impacto negativo que uma vitória militar da Rússia de Putin teria, não apenas a nível europeu, mas também global, o apoio à Ucrânia especialmente em armamento, mas também em dinheiro para a reconstrução do país ou em bens essenciais é decisivo no desfecho desta “operação “especial” na realidade uma guerra entre democracia e totalitarismo selvagem.
A barbárie de Putin e a resistência de Zelensky confrontam-nos diariamente com algo a que por vezes não damos o devido valor: a liberdade, que apenas um regime democrático mesmo com todas as suas imperfeições pode proporcionar. Queixamo-nos constantemente dessas imperfeições, das desigualdades sociais e económicas, da corrupção, da má gestão e de mil outras coisas e temos razão. Mas o mais importante é que podemos fazê-lo livremente, abertamente, sem medo de sermos presos, “suicidados” ou “desaparecidos”. A ditadura e o despotismo de Putin e das suas várias versões por esse mundo fora são hoje o mais poderoso aviso à necessidade de manter, aperfeiçoar e acima de tudo defender esse bem precioso, infelizmente ainda minoritário no nosso planeta e, mesmo entre nós, contestado por insignificantes demagogos populistas sedentos de poder.
Em síntese, e em resposta à pergunta inicial, vale a pena, sim, apoiar a Ucrânia e os ucranianos na sua resistência assim como os opositores russos de Putin, não só por uma questão de justiça, mas porque o que está em jogo é também a nossa própria liberdade.”
Esther Mucznik, Jornal Público, 5/08/2022
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