URBANO BETTENCOURT (Que paisagem apagarás, 2010)

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URBANO BETTENCOURT (Que paisagem apagarás, 2010)

1.                       VOZES NO CÉU DE DUBLIN

Para Adelaide e Vamberto Freitas

Vozes no céu de Dublin

by Urbano Bettencourt on Monday, 27 August 2012 at 18:59 ·

                                                                               

                                                                                           Para Adelaide e Vamberto Freitas

 

 Havia uma mulher sentada junto ao murete de pedra, nessa meia tarde de um Outono precoce  em que visitámos  as ruínas da Abadia de Howth.

 

O guia turístico adquirido na recepção do hotel informava que Howth  “has long been a favoured dwelling place for writers”, mas, referida a Dublin, qualquer indicação sobre a presença literária na cidade será sempre redundante. Assim, a manhã esgotara-se  entre a visita ao Dublin Writers’ Museum  e a demorada passagem pela Martello Tower, aliás,  James Joyce Tower, cujos recantos e escadarias pareciam ressumar ainda a inquietação difusa perante a ameaça de uma eventual invasão napoleónica .

 

A voz de Buck Mulligan, que nos havia transportado até aos alvores do século XIX num andamento pausado e a rondar a monotonia, adquiriu   uma súbita vivacidade  ao descrever o  memorial joyceano. E ganhou  uma inesperada gama de modulações e registos  quando se pôs a evocar os acontecimentos dessa luminosa manhã de Junho de mil novecentos e quatro em que Leopold Bloom saiu   de casa para comprar rins de carneiro e, ao entrar no talho, pediu tomates, num particular momento de perturbação espacial e linguística cujo eco o escritor  Arménio Vieira faria  chegar às ilhas de Cabo Verde.

Em Howth não houve qualquer Buck Mulligan a falar-nos do remoto prestígio da Abadia e do fascínio que exerceu sobre os intelectuais da Europa medieval. Vagueámos  pelo seu interior, tentando apenas surpreender ainda um possível  rumor de passos e as vozes dos homens que ali, um dia, construíram o seu mundo por entre o recolhimento e a contemplação da  Ireland’s Eye, separada de terra por um curto braço de mar e, mesmo assim, ilha longínqua, entregue ao seu destino de solidão e abandono. E tudo isso se harmonizava, enfim, com a melodia que a mulher sentada junto ao murete se pusera, entretanto, a entoar.

 

Nessa noite, Briege Murphy cantava no Howth’s Abbey Center. Mas só quando começou a  interpretar “The sea” me apercebi de que ela era, afinal,  a mesma mulher que nós  surpreendêramos junto às ruínas da Abadia. A  sua voz desenhava um fio melódico que se erguia no ar em movimentos oscilantes, acentuados pelo  dedilhado sóbrio do violão,  e nessa ondulação devo ter pressentido os ritmos marítimos de Saint-John Perse, o fluxo e refluxo das suas marés verbais,  dos seus versos desmaiando sobre o  corpo de uma  ilha da memória. Talvez tenha mesmo tentado perseguir no rasto dessa voz  o remoto apelo do mar que secretamente ecoa na poesia de Emanuel Félix. O mesmo mar que   traçou para sempre o destino de Enrico Mreule, levando-o a trocar o fechado  Mediterrâneo pelo Atlântico infindo,  sem saber que este era, afinal,   esse outro mar de Claudio Magris e onde tudo acontece.

 

Lentamente, porém, a canção ganhava corpo nas palavras de uma dorida história de amor  em que uma mulher a pouco e pouco se perdia  de si mesma nas repetidas  ausências do seu homem no imenso Atlântico  selvagem: he takes a piece of me with him, each time he leaves the shore. Depois, uma fina amargura invadia os versos e a melodia até desembocar num   desabafo derradeiro em que tudo era já sem remédio nem consolação: he won’t stay home for me, cause my love he has a mistress, she’s the sea. De  súbito, naquela história de enamoramento e ciúme chegavam-me os ecos da belíssima abertura do romance  Saudade, de Katherine Vaz,  e nela vibrava  a voz de Conceição Cruz, como se José Francisco tivesse decidido perder-se em definitivo da terra. E  dei comigo a pensar como será bom saber que,  de cada vez que sucumbirmos ao íntimo chamamento do mar,  uma voz de mulher há-de erguer-se para chorar-nos o destino e a perdição.

 

Assim, longe dos Açores e da Califórnia, ouvindo Briege Murphy no Howth’s Abbey Center, eu era ao mesmo tempo leitor  e personagem do romance de Katherine Vaz.

 

(Que paisagem apagarás, 2010)