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SOBRE O SUICÍDIO APARENTE DE MEU AVÔ
Quando nasci, meu avô baloiçava-se calmamente dependurado pelo pescoço no ramo de uma figueira estéril e despida que ele mesmo plantara em miúdo.
Nesse dia, o vento leste atirava o mar por terra dentro, empurrando-o sempre sempre para cá dos limites tacitamente estabelecidos, os peixes invadiram as casas mais próximas da costa, os barcos fugiram para os montes, as gaivotas espatifaram-se contra as vidraças e até uma baleia veio morrer à porta de um barracão abandonado. Nesse dia eu nasci. Talvez por tudo isto ninguém se tenha preocupado muito com a morte de meu avô: choraram-no e enterraram-no com a rapidez que as circunstâncias permitiam.
Anos mais tarde, porém, alguém fez novamente vir ao de cima o estranho fim de meu avô. Aqui, as opiniões dividiram-se.
Alguns vizinhos diziam que ele se suicidara por motivos passionais, imaginem!, aos setenta anos meu avô um duro que conhecera os rigores e a solidão da Terra Nova e da Gronelândia, que medira as noites invernosas de uma Ilha ainda por descobrir, calcorreando as Voltas do Norte numa altura em que as estradas eram um sonho a concretizar; meu avô que passara horas e horas agachado nos buracos da costa à espera dos barcos com tabaco de contrabando! Outros afirmavam que ele andava já meio descontrolado do miolo, fruto de uma vida errante de aventureiro sem limites, e não suportara o espanto de ver o primeiro neto.
Por mim, vistas as coisas a esta distância, julgo no entanto que meu avô se dependurou na figueira apenas para evitar que o mar lhe chegasse às botas.
U. B.
Em «Naufrágios Inscrições» (1987)