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Carta para Fatima Bettencourt
Cidade da Praia
Fátima,
A mensagem vai assim em formato de carta & tal, apenas para me desculpar pela demora em dar notícia dos teus «Sonhos e Desvarios», cuja leitura acabei há bastante tempo.
À medida que fui prosseguindo compreendi o que me tinhas dito em mensagem anterior, ao afirmares que tinhas saído da tua zona de conforto.
Na verdade, vejo que te deslocaste de contexto e espaços, ao encontro de outras gentes e de outros quotidianos, com as incidências muito particulares de uma «modernidade urbana» e das suas vidas miúdas – o contencioso entre o indivíduo e o poder, os equívocos e conflitos daí resultantes, o atrito por vezes violento entre a liberdade e as convenções sociais, o desajustamento em relação a uma realidade cujos contornos já não quadram bem com um conjunto de valores adquiridos e tidos por imutáveis.
Mas surpreendeu-me principalmente a estratégia narrativa utilizada com o recurso ao sonho como outro plano do «real» – por vezes em antecipação, mesmo que incompreensível a um primeiro momento e em conflito com os dados observados, outras vezes o sonho como matéria integral da narração. O que daí resulta é uma oscilação de fronteiras entre a realidade e a imaginação que se tem dela, o lugar instável do leitor perante um universo narrativo desta natureza, em que mesmo o insólito e o estranho são apresentados num registo de perfeita «naturalidade». E nada disso anula o olhar lúcido sobre a realidade actual, as suas incongruências e desvarios; antes, a convoca e a representa nos seus paradoxos e arbitrariedades, com a sua violência sobre os cidadãos, num discurso a que não falta, às vezes, a dimensão irónica e que se mantém sempre dentro de um tom «tranquilo» que não deixa, por isso, de ser menos eficaz na denúncia social. Neste aspecto, «Em trânsito» é a todos os títulos uma narrativa notável, digo eu, mesmo que o teu coração de narradora possa ter outras preferências.
Por tudo isso (e também pelo que aqui se poderia dizer ainda) vão os parabéns deste mano do Norte – mano nas letras e também no sobrenome comum trazido da Normandia por um antepassado remoto «de cuyo nombre no quiero accordarme.»
Grande abraço do Urbano
Ponta Delgada, 29 de Outubro de 2019
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