um susto islâmico 1990

UM SUSTO ISLÂMICO. KUWAIT CITY EM VÉSPERA DE GUERRA

 

…recordo estar no Kuwait a 31 julho 1990, dois dias antes da primeira invasão iraquiana de Saddam Hussein, para subjugar o pequeno emirado. Não o fiz voluntariamente, o emirado ainda não mereceria a visita, mas devido à avaria no avião da UTA[1] que me trouxera da Nova Caledónia via Sydney. Também não fui voluntariamente à Nova Caledónia, diga-se, de passagem. Para se beneficiar das tarifas reduzidas na UTA, embarcava-se em Sydney no avião de Paris, ia-se a Nouméa, esvaziava-se o avião, íamos ao aeroporto, comprava-se nada que era tudo caríssimo, tornava-se a embarcar na mesma aeronave e voltava-se a Sydney (onde não podiam entrar passageiros, só podiam desembarcar) e só depois íamos para a Europa. Esquemas fraudulentos da companhia de aviação para fingir que tinha grande ocupação no segmento Sydney – Nouméa. Os voos da possessão ultramarina da Nova Caledónia, eram frequentados por funcionários públicos franceses no regresso à Europa e vice-versa.

Trata-se de um dos locais mais caros do Pacífico. Tudo é importado de França, há a sensação de estar em Paris. A única diferença é o atendimento ser feito pelos habitantes das ilhas de Ouvéa e Futuna, a maioria dos nativos locais: 45% Melanésios (Kanakas), 35% Franceses, Polinésios nas ilhas mais afastadas. Os europeus concentram-se no sul, sendo Francês a língua oficial, além de dialetos melanésios e polinésios numa mescla de 60% católicos e 30% protestantes. O turismo é pouco, desproporcionalmente caro, ao contrário dos países do Pacífico Sul.

Nouméa, a capital, foi fundada como Port-de-France (1854) pelo Capitão Tardy de Montravel. James Colnett avistou-a em 1774, James Cook batizou-a como «Nova Caledónia» pois a costa lembrava a Caledónia, latim antigo para Escócia. Em 1788, a expedição de La Pérouse reconhece a costa ocidental, a bordo do l’Astrolabe e do La Boussole, antes de naufragar no recife Vanikoro, Ilhas Salomão.

Em 1793, o Contra-Almirante francês Antoine Bruny D’Entrecasteaux, que partiu em 1791 a pedido de Luís XVI para encontrar La Perouse, passa ao largo, reconhece a costa e incluiu as Ilhas Lealdade. No entanto, a descoberta é atribuída a Jules Dumont d’Urville (1827), que primeiro as localizou.

No final do séc. XIX e início do séc. XX as tentativas de colonização fracassam pela oposição dos nativos. Em contrapartida, em 1931, Kanakas eram expostos como canibais dentro de caixas, na Exposição Colonial Internacional de Paris. Na 2ª Guerra Mundial, 1940, a Nova Caledónia apoia a França e tornou-se (março 1942) numa importante base militar norte-americana. O território registou importante crescimento económico graças ao níquel (foi o terceiro maior produtor), enquanto a França a tornava em território ultramarino usado como colónia penal em 1956.

O ponto alto entre opositores e partidários da independência surge com a rebelião generalizada no período 1984-88. A violência culminou em 88 com a tomada de reféns em Ouvéa. Depois do Acordo de Matignon (88), previa-se um estatuto transitório de 10 anos, complementado pelo Acordo de Nouméa, maio 1998. O referendo sobre o futuro na República foi rejeitado em 2019.

Estava sossegadamente a bordo dum trimotor McDonnell Douglas DC-10 acabado de levantar do aeroporto de Omã (Emirados Árabes Unidos, escala desta viagem intercontinental) quando se dá a implosão do motor do lado esquerdo. A maioria dos passageiros fica sobressaltada. Durante largos momentos não há instruções, até um curto aviso, sobre “un petit (!!!) problème technique”. Os anglófonos, abordam-me “o que se passa?” preocupados, sobre o deserto de Omã (parte do enormíssimo deserto da Arábia), onde só se viam dunas e ancestrais depósitos de água totalmente secos. A imagem era aterradora. Havíamos começado a subida há 20 minuto. Em baixo dunas e mais dunas, deserto e mais deserto, sem vivalma, apenas velhos poços secos.

Os restantes dois motores obedecem ao piloto e lentamente o avião sobe, descrevendo um enorme círculo para a esquerda (lado do motor que implodiu), a tentar voltar para trás, ganhando mais altitude e o piloto avisou que iríamos para Kuwait City, onde chegamos sem incidentes, numa cena mais própria dum filme de terrorismo internacional. Fomos mandados para a extremidade, no setor militar, onde tropas armadas até aos dentes, rodearam o avião de fortes medidas de segurança. Uma hora depois fomos autorizados a desembarcar, saindo para uma larga autoestrada poeirenta que sulcava dunas, com poucos prédios (hoje parece Manhattan), até chegarmos ao luxuoso Intercontinental Hotel onde ficamos.

Era bem cedo, muito quente, e os bares do Hotel só abriam às 11 horas. Esperamos pela hora de abertura. Estávamos num pequeno grupo de expatriados franceses que regressavam à Europa, quatro kafires (infiéis) e duas francesas, uma cinquentona. Íamos a entrar para dessedentar, pois apesar do ar condicionado a temperatura exterior rondava 46º C àquela hora, mas um funcionário disse que kafires não entravam.

Desembocara dentro do bar um ruidoso grupo de dez locais, com o vestuário tradicional, o “thoub” branco, uma peça única e comprida. Na cabeça a “ghutra” ou “kaffiyeh” (o “shemagh” é usado em ambientes religiosos). Não havia no grupo nenhuma mulher com ou sem “chador” (véu islâmico).

Decorrida meia hora ou mais, fomos finalmente autorizados a entrar. Para espanto nosso, os árabes estavam a consumir álcool, alegremente, o que não é permitido, pelo Corão. A conversa deles parou, enquanto nos miravam, de alto a baixo, em especial as duas francesas, imodestamente vestidas para os padrões locais. Ouvimos o que se presumia serem piropos, em árabe ou corruptela de inglês com sotaque. A atmosfera era de cortar à faca, com olhares e dichotes ininterruptos (senti a picada na nuca como em perigo extremo). Acabamos de beber rapidamente, nesse ambiente hostil e ameaçador, saímos para o enormíssimo átrio.

Pouco depois, estava a conversar com Michel, programador do governo da Nova Caledónia, num cadeirão de veludo forrado a ouro, plantado no meio do átrio, do tamanho dum campo de futebol. Nem reparara, em frente a 10-15 metros, num grupo de três homens e duas mulheres cobertas com luxuosa jilbab e niqāb (o véu que cobre a totalidade da face, deixando antever os olhos e faz parte do hijāb). No Oriente-do-Meio, manda a tradição que o contacto físico entre sexos seja bastante rigoroso. A troca de apertos de mãos é permitida só dentro de uma relação lícita ou num vínculo forte de parentesco. Em meios diplomáticos, são permitidos cumprimentos entre homens e mulheres (cumprimentadas verbalmente). A mão esquerda é considerada “suja,” por ser utilizada na higiene pessoal. Deve evitar-se cumprimentar, dar e receber presentes e cartões com a esquerda. Em hipótese alguma se deve gesticular balançando as mãos fechadas, é um gesto hostil. Nunca se devem cruzar as pernas. Mostrar a sola do sapato é um insolente insulto, é a parte em contacto direto com o chão sendo considerada impura.

Estávamos, Michel e eu, alheios de tudo e de todos, em amena galhofa discutindo as virtudes de termos uma mulher no mundo ocidental que ninguém pudesse olhar ou cobiçar, provavelmente gesticulando, possivelmente mostrando as impuras solas dos sapatos, ténis ou botas, sem nos apercebermos que éramos os únicos ocidentais no enorme átrio. Sabíamos que nunca se olhava diretamente para a mulher árabe, ao contrário do que é normal no Ocidente, e eis, que, de repente, pelo canto do olho, apercebo-me que uma imponente figura, em traje completo de xeque, se levanta e anda metade dos metros que separavam o nosso sofá do dele.

Subitamente tomado de pânico ou mero medo, pela segunda vez nessa manhã, mas sem me desconcertar, a uma curta frase de alerta, levantamo-nos a conversar como se nada fosse, antes que o árabe se aproximasse mais. Aterrados, mas sem o querer dar a entender, distanciamo-nos tão rápido quanto possível rumo às escadas rolantes para outro andar. Não fomos seguidos, conforme verificamos (olhando a medo para trás). Tenho a imagem gravada na retina até hoje.

Ficamos para sempre com a dúvida, se o árabe se ia dirigir a nós, a acusar-nos de um qualquer crime hediondo, como ter olhado para o monte de tecido com dois pontos negros movediços na abertura superior ou se teria sentido insultado com a lamacenta sola dos sapatos, cheia de areia árabe, ou se o seu Cartier ou Rolex dourado, cravejado de diamantes, tinha avariado e ia perguntar as horas. Fosse o que fosse, mudamos rapidamente de piso e dirigimo-nos para a zona onde estavam os duzentos, ou mais, ocidentais ali tecnicamente exilados, enquanto o avião era reparado.

Toda a atmosfera, mesmo num hotel daquela categoria era aterrorizadora, intimidatória e perigosa. Senti o racismo na primeira pessoa. Os árabes eram sempre servidos primeiro e só depois os estrangeiros, fosse para o que fosse, mesmo que se tratasse apenas de se sentarem numa mesa ou num dos bares do hotel. Nunca tinha sentido a discriminação tão vivamente como ali. Senti mais medo físico nesse dia do que uns anos antes, quando temi pela vida, em Carachi (Paquistão) devido a uma tempestade de areia. O quadrimotor tentara arrancar e chegou ao fim da pista com esta coberta de areia, em enorme perigo ao tentar descolar. Fomos abrigar-nos no terminal. Do dia se fez noite e a pista ficou com metros de altura de areia. O átrio do terminal parecia uma duna saariana. Duas horas na escuridão. Por fim, a tempestade aterradora, de areia, amainara, os bulldozers vieram limpar a pista e o avião partiu rumo a Nova Delhi ou Bombaim (Mumbai).

Da janela do Hotel Intercontinental Kuwait, via-se o deserto ciclicamente cortado por um autocarro ou uma viatura topo de gama. A neblina do calor e humidade davam uma tonalidade de amarelo sujo a tudo o que circundava o hotel. Criavam-se miragens e a mente toldava-se enublada. Dois dias depois o terror, a morte, a pilhagem e destruição pelas forças de Saddam Hussein. O hotel serviu de abrigo aos jornalistas a cobrir a invasão iraquiana. Mais uma vez o mundo perdera a inocência.

Esta cena de terror no solo do Kuwait por causa do motor que implodiu, foi ainda pior do que outra em 1979, num avião da Alitália, vindo de Hong Kong, que caiu abruptamente mais de 6 km em segundos, num poço de ar. Muitos foram projetados, as bagagens a caírem, gritos e pânico, daí resultando leves ferimentos. Num instante estávamos bem por cima dos Alpes gelados e em segundos estávamos cá em baixo ladeados pelas montanhas, sem saber se o avião conseguiria recuperar altitude e sair daquele vale. Tivemos sorte mas ainda hoje se fecho os olhos só vejo a montanha alpina erguer-se a meu lado e nós pouco acima das aldeias no vale, as bagageiras abertas, malas no chão, gritos, confusão e motores a todo o gás.

 

[1] (UTA transportadora aérea criada em 1963 para as províncias ultramarinas francesas, absorvida pela Air France em 1992