Um segredo bem guardado Paula Cabral

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O vídeo mais recente do famoso rapper micaelense Sandro G anda aí a circular nas redes sociais, como que a anunciar o seu regresso.
Esteve esquecido durante uns anos. Emigrado nos Estados Unidos, com problemas judiciais por resolver, Sandro G não podia ser sequer localizado, embora a sua vida continuasse rotineira e sem percalços, como declarou numa entrevista dada recentemente. O cantor regressou à ribalta com a exibição da série “Rabo de Peixe” na Netflix, tendo a sua música servido de banda sonora na série do realizador açoriano Augusto Fraga.
As suas músicas têm temas muito variados, quase sempre relacionados com a sua vida de rebeldia, de foragido da lei, com o seu passado de pobreza e de toxicodependência, quer nas ruas de Rabo de Peixe, quer nos passos perdidos de um imenso país como os Estados Unidos.
Serviu este vídeo para me despoletar uma reflexão sobre a pronúncia micaelense. Sandro G canta como fala. É genuíno e assume a pronúncia com orgulho nas suas raízes. É aqui que queria chegar.
Por que razão a pronúncia de origem micaelense é tão envergonhada? Às vezes, renegada, é motivo de chacota pela sua sonoridade áspera e pedregosa da severidade da terra cuspida por vulcões. Pronúncia vincada por séculos de isolamento, habituou-se a sobreviver por entre dentes, fugidia, deixando atrás as últimas sílabas, como rabos de lagartixas escondidas entre pedra solta. Adivinhamo-las sem as pronunciar. Não precisam de ser ditas. São desditas seculares, cifra de segredos partilhados, mistérios da natureza implacável que só o silêncio sugere ou entende. No nosso falar, mora a natureza rude e uma história feita de solidões. O vocabulário também toma formas peculiares.
E há regionalismos cujo poder de evocação é muito expressivo, como tarelo, intenicar, riquinho, nica, desarrematado, atoleimado,.. ou arcaísmos que ainda se preservam, como aboiar, botar, cuidar (no sentido de pensar), ou o uso corrente de formas verbais no gerúndio.
Um falar taciturno, sombrio, tão nebuloso como a ilha frequentemente encoberta, ininteligível no horizonte incerto. Pelo contrário, a pronúncia do continente soa a solar, aberta, vibrante, bailada em grandes salões da capital. Aceitamo-la como padrão, normalmente a de Lisboa, embora os linguistas digam que não existe, já que todas as variedades se constituem como legítimas e aceitáveis. Os ilhéus, porém, olham-na com desconfiança, marcada por uma certa aragem trampolineira, a que chamam de falar “à politico” ou “à moda”. Talvez por pressentirem ardis no enredo de palavras tão desembaraçadas e polidas pelo asseio fonético. Desconfiam do seu desassombro. E é por isso admirável a confiança com que Sandro G assume a pronúncia genuína de Rabo de Peixe como marca da sua música. Não é certamente intencional. É ele próprio. Há uma certa candura nisto como há na própria raiz do nosso falar, que é espontâneo, quase ingénuo na sua forma de dizer o mundo.
Quando o usamos como código de intimidade e de proximidade, é invulgar a postura autêntica do artista micaelense que o divulga com orgulho. E daí muitos micaelenses fazerem da sua música pilhéria. Porque nunca nos habituámos a ouvir-nos, a nós próprios, com tal amplificação. Rimo-nos da nossa originalidade, mas acarinhamo-la em segredo e nela profundamente nos identificamos. É uma geografia interior que defendemos contra legendagens ou outras investidas de incompreensão.
E a propósito de desentendimentos que geram humor, conta-se a anedota do continental de passagem por S. Miguel, que, passeando na avenida marginal, resolve abordar um local com o objetivo de gozar da sua pronúncia. Depois de perguntar ao ensimesmado micaelense, que fumava descansado, sentado no muro da avenida, se haveria um dicionário que o ajudasse a comunicar com os micaelenses, pergunta:
– Tenho muita dificuldade em perceber-vos. Olhe, por exemplo, como é que vocês chamam aqui um filho da mãe?
O micaelense ergue lentamente a cabeça para o homem e lapidarmente responde:
– Eh mê rico sinhô, a gente não los chamim, eles vêm por si do contenente!
Acossado, um ilhéu defende sempre o que continua a ser um segredo bem guardado.
Um segredo bem guardado
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Um segredo bem guardado
Por Paula Cabral Paula Cabral O vídeo mais recente do famoso rapper micaelense Sandro G anda aí a circular nas redes sociais, como que a anunciar o seu regresso.Esteve esquecido durante uns anos. E…

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
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