Um obrigada aos meus alunos mais desinteressados

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Da minha amiga Mónica França, um texto que fala também por mim…
“Um obrigada aos meus alunos mais desinteressados
Aos mais suscetíveis de choque, eles não são meus amigos facebookianos. Só depois de se ter deixado de ser meu aluno se tem acesso a uma amizade por aqui. Estranhezas de privacidade que prezo muito.
Mas dirijo-me aos atuais, aos que partilham ainda comigo horas de aulas, àqueles a quem não tenho coragem de dizer o que penso. Porque é de falta de coragem que se trata, de nada mais.
Segue, como dizia, um muito obrigada aos meus alunos que desenham na minha aula, que têm um sentido de humor só possível a quem é de facto inteligente, que me interrompem em aulas de gramática para partilharem coisas de facto importantes, que podem ir desde “já disse à Rita que gosto dela, professora” até ao astuto “para que é que temos de saber isto?”. São vocês que me consciencializam todos os dias e cada vez mais para o que se faz na disciplina de Português, sobretudo ao nível do Básico.
Os meus alunos com maior autoestima, saúde mental e mais felizes não sabem conjunções nem locuções conjuncionais de cor (até porque elas estão em qualquer gramática à mão), são incapazes de conjugar um verbo em todos os tempos e modos (até porque eles estão em qualquer gramática à mão), nunca se preocuparam com a subclasse de qualquer palavra (até porque ela está em qualquer gramática à mão), dificilmente fazem a conjugação pronominal correta quando um verbo está no futuro ou no condicional (até porque ela está em qualquer gramática à mão) e lembram-me logo de que isso não se usa, ninguém diz isso, a não ser, claro está, quem seja muito vaidoso no falar. Os meus alunos mais felizes anseiam por saber se a Rita vai dar uma resposta positiva ou negativa, que é a mais digna ansiedade que se pode ter aos 14 anos, enquanto a professora martela gramática. Os meus alunos mais distraídos são os mais saudáveis, porque, embora inconscientemente, expressam-se. Ignorantes do que fazem, cuidam da sua saúde.
Aos meus alunos distraídos, um muito obrigada por me consciencializarem. Um muito obrigada por só espetarem a orelha e a atenção quando vos leio um bocadinho de um livro no início da aula, quando trabalhamos um texto que vos diz alguma coisa, quando escrevem e podem usar da criatividade (que já nem é muita, porque até a escrita que se ensina tem molde certo). Já repararam que, nestes momentos, nenhum de vocês desenha (o que pode ser coisa perniciosa, porque não há talentos revelados sem trabalho), nenhum de vocês espreita pela janela, e até o Diogo se distrai da Rita por uns momentos? Nestes pedaços de aula, estamos realmente juntos, porque até eu estou mais convosco. Nestes e nos muitos mais em que uso o humor (dão-se algumas gargalhadas nas minha aulas, tenho de confessar), da empatia, da atenção efetiva e afetiva, do inesperado, de alguma partilha, de “o que te disse a Rita?”. Já repararam – e conseguem-no se estiverem de facto atentos – que tenho muita vontade de ensinar aos vossos colegas ases em gramática a serem felizes? Mais ainda, gostava muito de lhes poder dizer que uma prova final de ciclo ou um teste não os define e é um (quase) nada na vida. Mas é difícil dizer-lhes isto quando foram formatados a sentirem felicidades momentâneas que provêm de fatores extrínsecos, de triunfos que duram minutos ou dias. Se podia ser criada uma disciplina para se aprender a ser feliz? Não só podia como devia.
Mas tenho de partilhar convosco uma coisa – nem sempre as coisas foram assim. Quando estagiei e ainda nos primeiros anos de ensino, deixavam-nos ensinar os alunos a pensar (tive particular sorte com os meus orientadores de estágio e nunca nenhum aluno meu naquele ano soube gramática de cor, mas a maioria teve a oportunidade de pensar sobre a língua, de ser, por momentos, um pequeno linguista), deixavam-nos selecionar os textos e os poemas que vos seriam mais queridos, deixavam-nos pôr-vos a escrever com criatividade, davam-nos tempo para vos fazer perceber e sentir que ler é mesmo o melhor do mundo e que é lendo que se aprende português, davam-nos asas para traçarmos o caminho a seguir para alcançar as metas que fazem sentido (e, juro-vos, não são as que inventou o Ministério da Educação). Enquanto aluna, também tive sorte – apanhei ainda professores que podiam usar e usavam da criatividade; cheguei mesmo a apanhar um que nos confiava duas horas de aula por semana para lermos onde quiséssemos no espaço da escola, sem regras, sem se pôr a vigiar-nos, e garanto-vos que a liberdade era tanta para quem tinha 11 anos, que não nos atrevíamos a fazer outra coisa que não fosse ler nos primeiros dez minutos nem a fazer outra que não fosse sonhar com o livro no resto das duas horas que voavam.
Se os meus alunos baldas lessem isto, perguntavam-me logo como é que costumo estar animada e enérgica quando lhes ensino em parte do tempo aquilo em que não acredito ou por que motivo lhes minto quando digo “é importante estudar gramática”. Resposta possível: passei ao lado de uma grande carreira no teatro ou no cinema. Ou outra ainda (sincera, mas de quem não tem coragem): gosto de vocês e sei que a sociedade espera que passem de ano. Perdoem-me pela carreira de atriz que não segui; perdoem a sociedade, porque ela não sabe o que faz.
Não escrevo isto para me armar em consciente. Aliás, dou provas da minha inconsciência e inconsequência, porque são meus amigos facebookianos colegas que decerto não concordarão comigo, presidentes de conselho executivo e diretoras pedagógicas que terão também ideias que não as minhas.
Não escrevo isto para me vangloriar de ter alunos distraídos, embora nutra por eles um particular orgulho e inveja. Menos ainda por me achar mais atenta do que os meus colegas. Escrevo porque sei que expressar-nos é bom para o fígado. A medicina chinesa vê num fígado saudável o equilíbrio para toda a saúde e ando obcecada com isto.”