UM DIA COM O JÚLIO. DE MATOS.

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UM DIA COM O JÚLIO. DE MATOS.
Estou a adorar esta vida cheia de regras. A sério que sim. As máscaras no meio da rua com 35 graus e um ar irrespirável, os certificados que não certificam nada mas que nos são pedidos em todo o lado. Quero ser simpático com quem tenta apenas fazer o seu trabalho, mas não consigo. Tudo isto é para lá de estúpido.
Entro nas garagens do Estádio da Luz. Aquele edifício com lojas e restaurantes mesmo em frente. Um rapariga atrapalhada lê o meu certificado à porta da Portugália. Não consegue. Vem outro e mais outro, até que alguém diz que “em papel é difícil”. Abro a app do SNS, faço a autenticação e escapa-me um sonoro “foda-se, que tortura com esta merda!”.
E ali fico mais 5 minutos, sozinho na porta do restaurante, a tentar fazer login naquela merda enquanto as 4 ou 5 mesas ocupadas observam.
Mas a culpa não é deles. É de quem cria um conjunto de regras idiotas e ineficazes que rebentam com o que falta no comércio e, até, com a simples vontade de socializar.
Desistem e deixam-me entrar sem verem a validade de um papel inútil. Sento-me e peço a vazia do costume. A dieta pode esperar pelos lagos suecos. À minha frente está um casal de meia idade com alguma pinta. Ela parece a Maya, ele parece o Rui Moreira de calções de golfe e mocassins. Chega o bife e o camarada da frente solta uma sonora flatulência. A Maya olha para mim, ele finge que não aconteceu. Sou rapaz de convívio simples e de afecto fácil, mas julgo que um certificado de boas maneiras seria mais útil à entrada.
A caminho do bife tinha passado na Decathlon para comprar uma mochila. É dia de ir à Catedral e não posso entrar com tudo nos bolsos. À porta exigem máscara apesar de não estar ninguém num raio de 10 metros. Curiosamente, os mesmos metros que nos separam de um carro estacionado em dois lugares, no raio de visão dos seguranças e, aparentemente, sem infringir qualquer regra.
Já no exterior do estádio tiram-me a temperatura. Estou a suar com a estufa que Lisboa preparou. Pedem-me novamente que use máscara. Estou na rua, continuo na rua, debaixo de um sol abrasador e a transpirar para a máscara. Avisam-me logo que não posso levar a garrafa de água por ter mais de 33 cl. Deus nos livre de um ataque às 5 pessoas da claque do Arouca com meio litro de água. Voltam a olhar para o certificado mas não usam nada para a leitura. São seguranças com um sensor QR nos olhos. Já dentro do estádio resta-me a hipótese de comer um gelado a cada 5 minutos a troco do oxigénio.
Com tamanho controlo, ninguém teve tempo de recolher o lixo que faz as delícias das varejeiras ali ao lado.
Sinto saudades dos tempos em que as grandes temáticas de uma ida à bola se resumiam ao courato na roulotte da Sónia ou bifana na dona Filomena. Mas enfim, a culpa não é dos desgraçados que ganham o salário mínimo e ainda têm que ouvir gente saturada como eu. A responsabilidade única é de quem governa e afecta a vida de milhares com base nas opiniões dos Antunes da nossa praça.
Nada tenho contra regras e muito menos contra a defesa da saúde pública. Contudo, o que vejo são apenas operações de cosmética numa sociedade que não cumpre o básico do civismo, quanto mais da saúde pública.
E no fim do dia no manicómio, ainda tenho que levar com o Pizzi no 11.
Depois não querem revoluções.
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  • Pedro Moura Pinheiro

    Gosto da Passagem sobre a capacidade da sociedade portuguesa manter o cumprimento das regras cívicas…
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