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UM BETO NO DISTRITO VERMELHO|
Tiago Franco
Vi um beto nas festas da minha freguesia e isso foi, só por si, um momento. Não sei se já vos contei mas mudei-me para a freguesia vermelha da ilha. Existe uma azul, outra verde, uma amarela, uma tutti-fruti e outra vermelha. As casas são pintadas de vermelho e branco, como deveriam ser no resto do mundo, e isso torna a freguesia vermelha. Isto, apesar de ser a única da ilha com junta de freguesia de direita. A revolucão tarda mas enfim, não se pode ter tudo.
Mas o beto, voltemos a ele, “não era de cá”. Sabemos sempre quando alguém “é de fora”. O problema é que eu já tinha falado, algures no planeta, com aquele beto. Não sei onde nem quando. Nunca esqueco uma cara mas raramente recordo a conversa. É aliás a razão pela qual perco quase todas as discussões conjugais. Se me disserem que eu fiz algo bastante reprovável naquela manhã de Outono ou disse uma barbaridade naquela tarde de verão, eu acredito. Na melhor das hipóteses venco um argumento com momentos ocorridos nas últimas 24h. Aí sou quase imbatível no paleio. Depois disso sou um sitting duck, pronto a ser abatido por qualquer sniper menos treinado.
Sempre quis ser beto. Era um dos meus objectivos de vida na juventude mas faltava-me tudo. Caracóis nunca deram para aquela franja que tapava a testa. Sapatos de vela rebentavam-se todos ao primeiro remate. Calcas justas davam-me comichão. Pólos das Amarras eram caríssimos. Beijos numa bochecha só, eram sinónimo de saltos no vazio do outro lado. Ainda por cima era razoavelmente bom a matemática, não achava o Paulo Portas um “grande estadista”, preferia “muito” a “imenso” e os Mike and the Mechanics não eram a melhor banda de sempre. Nunca tratei familiares por você. Raramente trato seja quem for por você.
Mas tentei. Ainda fui para a escola com calcas brancas, tão, mas tão apertadas, que o glúteo africano com que nasci se juntou ao saco testicular em formato de LP de 33 rotacões. Entrei na Bafureira, fui ao Bahaus e ao Coconut ou lá como se chamava aquilo. Passei uma noite inteira com uma cerveja no T-Club porque não tinha dinheiro para outra. De vez em quando acabava a noite naquela ali ao lado da Kapital onde de facto se ouvia “looking back, over my shoulder”, enquanto se dancava com um cigarro na mão e um copo de rum com cola na outra. Também já não me lembro do nome do sítio. Mas não era vida para mim. O rum ainda vá, cigarros e calcas que me colavam as partes nunca foram a minha praia.
De onde conheceria eu aquele beto? Devo dizer que os betos velhos são muito parecidos com os betos novos. Aliás, há toda uma moda que se aguenta ao fim de 30 anos, o que é louvável e até um selo de qualidade para o movimento.
O beto aparece na festa da freguesia com 3 amigos e respectivas mulheres. Eles de mocassins, camisas brancas de linho, camisola de malha fina na cintura. Está um calor tropical mas a cintura precisa sempre de um adorno. Elas chegam de vestido comprido, cada uma com a sua cor, todas com os mesmos brincos. Obviamente louras, pintadas ou não saberá Deus e vocês que percebem de tintas e raízes. O português comum é quase sempre moreno de cabelo escuro. A beta resulta normalmente de um cruzamento germânico com marroquinos. Umas argolas penduradas nas orelhas que serviriam para um leão saltar entre labaredas. Directamente dos 90’s para 2022, um maravilhoso clássico. O Land Rover da indumentária. Não morre, não desiste.
Eles alinham-se cá atrás, olhando a plebe e assistindo ao concerto sem mexerem um fio de cabelo. Os que ainda o possuem. Alguns metemas fichas todas na indumentária porque o cabelo já foi. É possível, ainda assim, ser beto velho e careca. O segredo é apostar mais no relógio, três vezes maior do que o braco, para desviar os olhares. O sertanejo segue animado, eles nem tanto. Uma mão no bolso ou no telefone, a outra na caipirinha. Sim, a nossa freguesia tem barraca de caipirinha.
Elas chegam logo a dancar. Fazem coreografias, repetem os passos das aulas de aeróbica que frequentam em conjunto. Ganham histórias para contar no regresso a casa, tiram “selfies” para o insta, fazem “lives” que mostram a diversão nas festas da aldeia vermelha. A ressaca de amanhã valerá a pena porque foi supé divertido gingar ao som daquele sertanejo.
Entre um morango do nordeste e outro tche tche re re, bebericava a minha imperial em copo reciclado e dava mais um passo com a patroa, pensando como são intemporais as irritacões. Ou até como patroa continua a ser a melhor designacão para quem nos vence nas discussões caseiras.
Ainda por cima tenho a sensacão que a minha interacão com o, agora beto velho, foi pouco simpática. Lembro-me de ele ter feito uma cara de desagrado. Mas onde, quando e porquê? Terei sido pouco caturreiro algures na vida?
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Ana Nogueira Santos Loura and 59 others
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- Delicioso. Obrigado.
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- essa do glúteo africano…
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- Que barrigada de riso – como dizemos no distrito verde continental! Tão bom o texto que até me esqueci das cedilhas! Grata por não ter nascido “gajo” e usar calças que moldam e juntam as partes!
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Maria-Helena Cabral de Lordelo
Isto de ser o “new kid on the block” tem muito que se diga. Adorei.- Like
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- O nome do sítio era Plateau e era horrível.
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- Paulo Lopes issooooooo
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- Adorei a descrição do beto, conheço bem
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- Obrigada Tiago… Tou farta de rir..
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- Subscrevo a sugestão de uma leitora. DEVERIAS ESCREVER UM LIVRO.Pelo menos um. Já me recostei num maple, confortável… aguardo a publicação. Abraço querido
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- Fernanda Saraiva tia, eu bem tento, mas arranjar quem publique é que são elas
beijinhos
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- vivias no limite de “cima da rocha” da matriz para baixo 🙂
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- Entendo perfeitamente a inquietação De onde o conheço? O problema com os betos é são tão parecidos que é impossivel distingui-los
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