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CLARIDADE
Quando o terceiro volume de “A Criação do Mundo” (1939), de Miguel Torga (1907 – 1995), foi editado, a polícia política apreendeu o livro e prendeu o escritor na cidade de Leiria, onde nessa época vivia e trabalhava.
Salazar não admitia a expressão da repugnância que os ditadores provocavam ao poeta, nomeadamente Mussolini que, à época, arrebatava os italianos com os seus inflamados discursos, e da dor sentida, a partir de uma vivência in loco, perante a destruição de Espanha durante a Guerra Civil que opôs republicanos e nacionalistas (liderados por Franco).
De Leiria, passados alguns dias, Miguel Torga foi transferido para a cadeia do Aljube, em Lisboa, onde escreveu, entre outros, um poema magnífico em que fala de uma rapariga loira, avistada das grades da cela, e da roupa branca que ela estende numa corda. Um pequeno gesto, porém, com tão grande significado ao nível dos sentimentos do poeta… Como se essa imagem representasse a liberdade sonhada, a paz e o próprio povo português:
Clareou.
Vieram pombas e sol,
e, de mistura com Sonho,
pousou tudo num telhado…
(Eu, destas grades, a ver,
desconfiado.)
Depois,
uma rapariga loira,
(era loira)
num mirante
estendeu roupa num cordel:
Roupa branca, remendada,
que se via
que era de gente lavada,
e só por isso aquecia…
E não foi preciso mais:
Logo a alma
clareou por sua vez.
Logo o coração parado
bateu a grande pancada
da vida com sol e pombas
e roupa branca, lavada.
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