TITAN POR ANTº BULCÃO

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Titan
Não sei praticar caça submarina. Na minha adolescência, muitos amigos sabiam, e eram bons naquilo. Eu por cima das pedras, munido de caniços, engodos e iscas, e eles a mergulhar.
Até que um dia decidi experimentar ir com eles. Sem espingarda, só para observar. Barbatanas para os pés, óculo nos olhos e nariz, tubo ajustado e lá fui, no porto de Castelo Branco.
Enquanto a água não foi muita por debaixo de mim, a coisa até correu bem. Estava a ver os peixes que conhecia, pequenos sargos, carapaus, no fundo peixe-rei. Mas quando comecei a afastar-me um pouco da costa, a fundura já era muita. Senti os ouvidos a estralar, as têmporas a apertar e ala pra dentro, as barbatanas a bater de susto.
Gosto de ver na televisão documentários sobre as profundezas dos oceanos, a bicharada estranha que habita os abismos, mas sentado no sofá. Aquele não é, definitivamente, um meio onde me sinta à vontade.
Por isso segui, como muita gente, o drama do Titan.
Primeiro pensando que, por mais rico que fosse, não me metia dentro de uma coisa daquelas para descer 3.800 metros no Atlântico. Muito menos para ver o Titanic. Se não tivesse mais que fazer a 250.000 dólares, dava-os a quem precisasse, aos que levam toda a vida a enfrentar monstros horríveis à superfície, em naufrágios sem remédio.
Depois, pensando que estavam cinco vidas humanas em risco. Pobres ou ricas, já pouco interessava. E comecei a seguir as notícias que davam conta da evolução da tragédia. Especialistas das funduras aventando as várias hipóteses. Podia estar tudo normal, apenas terem perdido as comunicações. Podiam estar no fundo, pousados, mas sem motor para subir. Podiam estar lá em baixo, mas presos a alguma parte do Titanic. Que tinham oxigénio para noventa horas. Que já se mobilizavam meios para o resgate, navios, submarinos, gruas. Mas sempre na esperança de estarem vivos os ocupantes.
E ficámos a ver o tempo a passar. A contar as horas até o oxigénio acabar. A imaginar a morte horrorosa que deve ser. Ainda por cima um pai e um filho, qual deles deixaria de respirar primeiro com o outro a ver o fim… Mas sempre esperando estarem vivos e o socorro chegar a tempo.
Por fim, a notícia fatídica. Teria havido uma implosão. Que acontece quando a pressão exterior é maior que a interior. E todos aqueles que esperavam estarem aqueles seres vivos, de repente passaram a desejar que a morte tivesse sido rápida. Que estranhos somos…
Que sim, afiançaram logo os especialistas. Foram esmagados como uma folha de papel. Numa fracção tão pequena de segundo que nenhum cérebro humano se aperceberia sequer do que tinha acontecido. Recuperar os corpos? Quase impossível, há correntes e muita fome àquela profundidade.
Em nenhum desses dias esqueci o Galamba, ou a guerra na Ucrânia, ou os mortos no Mediterrâneo, sem ajuda. E rapidamente as televisões do mundo esqueceram o Titan, para se concentrarem no grupo Wagner e se chegaria a Moscovo.
A Humanidade está a descer demasiado fundo. Até que nos falte o oxigénio a todos…
António Bulcão
(publicada hoje no Diário Insular)
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Margarida De Bem Madruga

Ah, homem, como tens razão!…
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