TIMOR O CONTO VENCEDOR

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Leia o conto vencedor do IX Prémio de Língua Portuguesa
“O Futuro de Timor-Leste virado do avesso”
Parabéns Hornai Ramos
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Segue o conto vencedor do IX Prémio de Língua Portuguesa, “O Futuro de Timor-Leste virado do avesso”, de Hornai da Silva Ramos, selecionado dentre os 71 textos concorrentes este ano.
Parabéns ao Hornai, que poderá usufruir do prémio de um Curso de Verão de Língua e Cultura Portuguesas, em Portugal, e obrigado a todos os participantes!
O futuro de Timor-Leste virado do avesso
Hornai da Silva Ramos
Sempre que todas as terças-feiras nós tínhamos aula na sala C15, eu não gostava. Não era por causa da lição ou da professora, mas por causa do lugar de aprendizagem, porque a sala C15 era a mais pequena de todas do Liceu e ficava situada num lugar que fazia os nossos olhares ficarem inquietos ao ver muita gente em redor, que passava encostada pelas janelas enquanto a aula decorria. Essa sala tinha muitas janelas e toda a gente da faculdade a conhecia, porque estava colado C15 mesmo no cimo da porta.
Era uma terça-feira de sol, no dia vinte e um de fevereiro. Era metade do dia, aquele momento em que nós não necessitamos do relógio para certificar que já é meio-dia, pois basta olhar a nossa sombra que aparece ensombrada nos nossos próprios pés. Quando entrei no portão da universidade, o meu corpo parecia água nascente porque fazia muito calor nesse dia. Vi que a sala C15 ainda estava vazia, a porta ainda estava fechada, nenhum dos meus amigos da turma ainda lá estava. Uma terça-feira muito diferente das outras. Nesse momento, eu pensei que, ou eu andava distraído ou talvez houvesse um mal-entendido com o horário e o calendário, mas quando eu os consultei, era mesmo terça-feira, tínhamos aula de literatura e cultura timorense com a professora Sara na sala C15. No entanto, eu já duvidava de mim mesmo, pois não via ninguém. Entretanto, um amigo da outra turma informou-me que a professora e os meus amigos da minha turma foram para a SEJD (Secretaria de Estado da Juventude e Desporto), mas ele também não sabia qual era o objetivo de irem para lá, só sabia dizer que eles foram para lá. Depois dessa informação, eu não me demorei mais e segui para a SEJD.
Ainda de longe, vi os meus amigos. Ainda lá estavam, junto com imensa gente em fileiras e eu não sabia o que eles estavam a fazer. Quando eu cheguei, eles deram uma gargalhada que eu nem entendia, mas depois disseram-me em tétum que era Loron boʼot, grande dia, não tínhamos aula, só devíamos fazer uma marcha para a biblioteca Xanana Reading Room nesse dia. Quando eu lhes perguntei sobre o objetivo desse estirão, eles só responderam que era para celebrar o loron boʼot, mas não percebiam mesmo o alvo desse grande dia. Nesse momento, os arredores de SEJD enchiam-se de várias escolas do ensino básico de vários municípios, de vários uniformes, de vários estudantes para fazer essa caminhada, mesmo que ainda não entendêssemos a sua meta. Mas depois, os professores orientaram as crianças em fileiras e ofereceram-lhes algumas bandeirinhas para fazer esse passeio. Nós também recebemos essas bandeiras… aquelas bandeiras eram quadradas e brancas, no seu centro estavam escritas palavras de cada um dos idiomas que ainda existiam nas regiões de Timor-Leste e cada fileira de uma dada escola representava um idioma.
Nesse grande dia, a terra cobria-se de sol, nós estávamos banhados em suor, misturados de cores, cheios de dores, mas estávamos com boa vontade para fazer essa caminhada até à Biblioteca Xanana Reading Room. Pelo caminho, levantávamos as bandeirinhas em cima, gritámos e cantámos muito alegres, mesmo que nenhuma dessas crianças soubesse falar a sua língua nativa, aquela que estava escrita na bandeira que elas orgulhosamente seguravam. Alguns de nós, adultos, também não sabíamos falar a nossa própria língua nativa. No entanto, alguns falavam um pouco e eu falava bem a minha língua mãe, que era o tokodede. Quando nós chegámos à Biblioteca Xanana Reading Room, um palco brilhante despertou a nossa vista, cheio de várias luzes, de muitos balões, imensas cores e um grande póster colocado atrás do palco. O póster tinha escrito as informações da comemoração do grande dia que nós, até ao momento, não entendíamos. As informações diziam assim “dia vinte e um de fevereiro é o dia internacional de todos os idiomas do mundo, é um dia com o objetivo de salvaguardar e proteger todos os idiomas do mundo” foi assim que nós percebemos o objetivo daquela marcha.
Depois de alguns minutos, a mestra de cerimónia anunciou a sessão da programação da comemoração. E o primeiro era o discurso do patrocinador da biblioteca Xanana Reading Room que era mesmo o líder Xanana Gusmão. Quando o discurso terminou, eu só captei algumas mensagens. Diziam que esse dia era muito pertinente porque o mundo inteiro comemorava todos os idiomas e nós também comemorávamos esse dia para que pudéssemos recordar e memorizar sempre as nossas raízes, de onde vínhamos, onde estávamos e para onde íamos. Portanto, se nós esquecêssemos as nossas raízes, a nossa vida não fazia sentido nenhum, o nosso corpo ficaria sem alma, porque sempre vivemos juntos com a nossa identidade. A nossa identidade era a nossa alma e um povo sem identidade era um povo sem história, visto que a nossa identidade eram as nossas línguas nativas, o nosso tais, belak, morteen, os nossos usos e costumes, entre outros. Por isso, não podíamos esquecer as nossas raízes.
Além do discurso, havia outra programação: a narração de histórias, apresentação de poesia, cancões, danças tradicionais e oficinas de escrita para as crianças na língua nativa que a escola representava. Embora todas as atividades do programa corressem muito bem e muito rápido, quando chegou ao fim todas as crianças tinham um grande desafio: o difícil não era escrever, mas sim escrever na língua nativa. Aí é que as crianças tinham muitos problemas. Então, nós demos assistência àquelas crianças. Eu fui ajudar um menino em que a sua escola representava o idioma mambae. Este menino vinha do município com fama do café, mas ele não sabia falar o mambae. Entretanto, eu estava muito curioso em saber qual era o problema dessa criança e pergunteiː
– Amaun, em que língua os teus pais falam em casa?
-Mambae e tétum.
– Em que língua os teus pais falam contigo?
– Só́ em tétum.
– Apenas em tétum! Então, o mambae?
– Sim, só́ em tétum, o mambae é apenas para eles.
– Quem são eles?
– Os Katuas e Ferik.
– Ohh… está bem.
Apesar de ser breve essa conversa, eu percebi o problema das crianças. Assim, nós tentámos ajudá-las e elas conseguiram terminar bem a sessão e, como o último programa era a oficina de escrita, então todas as atividades terminaram bem. Depois dessa magnífica celebração do dia internacional de todos os idiomas do mundo, lembrei-me do diálogo do menino e também me lembrei de que no meu bairro, na minha vizinhança e na minha casa, toda a gente falava sempre em tétum para as crianças, o tokodede era para os adultos. Os pais tinham sempre como uma das razões que era melhor ensinar o tétum para as crianças para que não dificultasse o seu ensino aprendizagem e para que não prejudicasse as conversas com as outras pessoas de outros municípios quando fossem para a cidade, porque o tétum era uma língua comum e uma das línguas oficiais.
Quando as atividades da comemoração terminaram, os meus amigos ainda lá continuaram, mas eu despedi-me deles e voltei para casa porque me senti um pouco maldisposto. Entretanto, como ainda estava no fim da tarde, fui até à praia da areia branca para aliviar o cansaço. Na boca do mar da Areia Branca, era muito tranquilo e fazia com que eu viajasse para terras da Ucrânia com um papelinho de uma história de um viajante do tempo chamado Sergei Paramarenko. Naquele fim da tarde ninguém estava lá, o suspiro do vento era muito sereno e o mar também se revolvia muito calmo. Depois da leitura, observei a paisagem do mar, era tão magnífica que as gaivotas voavam pela beira-mar, as águias lá no céu olhavam fixamente os peixes que os tubarões perseguiam, e o cheiro da natureza fazia-me sentir muito tranquilo. Quando os tubarões apanhavam os peixes, as águias desciam muito velozes para aproveitar alguns peixes que pulavam da boca do tubarão. Uma das vezes em que as águias se aproximaram para apanhar peixe, vi uma peça enorme de ferro que as acompanhava, uma peça preta e redonda. Quando o sol passou pelo corpo dessa peça, o seu raio endireitou-se na minha vista e vi um grande arco-íris e, inesperadamente, eu não deixei de ver bem a terra. Os meus olhos doeram muito, tapei-os com as minhas mãos e as minhas lágrimas molharam o meu rosto com muito sal. Eu baixei-me para lavar o rosto com a água do mar e de seguida pousei a cabeça no meu joelho
Passados alguns minutos, senti-me melhor, então tentei abrir os meus olhos para ver. Contudo, quando eu lancei o meu olhar ao mar, vi que todas as coisas eram diferentes, não eram iguais como antes de eu ter visto o arco-íris. Nesse momento, vi uma praia muito linda, repleta de gente a mergulhar. Entretanto, todos os que estavam lá pareciam malaes porque o tom das suas peles era branco e falavam uma língua estranha que eu suspeitava ser o tétum, mas não era bem o tétum-praça, era outro tétum que eu não sabia. As mulheres e as meninas só usavam biquíni enquanto se banhavam. Assim, entrei em pânico com essa sensação e senti muito receio. Então, saí para a rua. Quando cheguei à beira da rua, olhei para a estrada. Era muito larga e havia muitos prédios de vidraças e na margem da estrada vi uma placa que tinha mesmo escrito “Avenida da Areia Branca”, mas o lugar era muito diferente!
Estava a tremer de suor e a tentar passar mais um pouco à frente para perguntar a alguém que horas eram porque o céu estava nublado. Quando perguntei aos dois senhores que caminhavam na minha direção, eles apenas me mostraram os seus telemóveis. A princípio, todas as coisas eram muito diferentes, já eram dez horas da manhã, do dia vinte e dois de fevereiro de dois mil cento e vinte e três. Nesse momento, eu fiquei tão pálido e preocupado com essa sensação que aqueles dois homens, ao verem a minha condição, perguntaram-meː
– Ó kusi neʼebé? [De onde vens?]
– Haʼu husi Tasi-tolu [Sou de Tasi-tolu]
– Ahh… Ó la hatene konjuga verbu iha tétum ka? [Ahh… Tu não sabes conjugar o verbo em tétum?]
– Oinsá konjuga verbu iha tétum? [como conjugar o verbo em tétum?!] – falei em voz trémula.
– Ahh… Ita koʼalia ho ema neʼon-kari ida! [Ahh… falamos com uma pessoa distraída].
Como eu não sabia falar bem o tétum, nem aquela forma de conjugar o verbo Husi [vir] em tétum, uma vez que eu disse Haʼu musi Tasi-tolu, então aquelas pessoas deixaram-me sozinho e foram-se embora. Depois dessa ocorrência em que as pessoas falaram comigo, eu estava banhado em suor, senti-me muito só e não sabia onde estava nem para onde eu iria. Logo, tentei passar pelas calçadas à procura de alguém para me indicar o caminho de retorno para casa porque as pessoas que estavam lá na praia da Areia Branca não sabiam falar o tétum-praça e eram malaes. Entretanto, pelo caminho, não vi nenhum transporte público, como microlete ou táxi, para eu apanhar. Pelas ruas andavam apenas carros privados e de luxo. As casas também eram diferentes, eram prédios de vidraças e bem altos. No meio do caminho, vi um grande jardim luxuoso como se estivesse no paraíso e em frente do jardim havia uma placa que tinha escrito Avenida Largo de Lecidere. Ali, eu estava quase a reconhecer o lugar porque era um sítio onde eu passava sempre os meus tempos livres. Mas eu continuava em dúvida porque as instalações estavam mudadas e os vendedores de cocos já não estavam lá. Naquele jardim havia muita gente, talvez fossem estudantes! Pareciam estudantes, porque toda a gente se sentava em grupo com computadores de maçãs. Eu esperava que aquelas pessoas soubessem falar o tétum-praça e a minha língua nativa para que pudessem indicar-me o caminho para casa. Então, com um pouco de esperança no coração, entrei lá para perguntar.
– Bom dia, imi hatene dalan bá Tasi-tolu ka? [Bom dia, vocês sabem o caminho para Tasi-tolu?]
– Haha… sá tétum ida mak neʼe! La konjuga verbo. [Haha…que tétum é esse! Não há conjugação do verbo] – diziam-me em voz de risos.
– Entaun, imi hatene koʼalia Tokodede ka? [Então, sabem falar o Tokodede?]
– Ó matete sá mak neʼe! [O que estás a dizer!] – exclamaram eles.
– Imi koʼalia português hatene ka? [Sabem falar o português?]
– Ahh… sabes falar o português! Diz, o que é que tu queres?
– Qual é o caminho certo para Tasi-tolu?
– Tu vais esperar o táxi voador ali na praia.
– EO quê?! Táxi voador? – respondi eu, completamente incrédulo!
– Sim.
Logo, dirigi-me para a praia, mas eu ia muito confuso… para apanhar esse veículo devia ficar à espera na praia. Porém, eu admirava aquelas pessoas que sabiam falar muito bem o português e o tétum. Na praia de Lecidere, havia muita gente à espera do táxi voador e eu estava muito curioso em saber se toda aquela gente sabia falar tão bem o tétum e o português, da mesma forma que as outras pessoas tinham falado comigo. Quando eu conversei com aquelas pessoas, descobri que toda a gente falava muito bem essas duas línguas, todos seguiam a norma gramatical, só que eles desconheciam e não sabiam falar as línguas nativas das regiões de Timor-Leste, mesmo que aquelas pessoas também estivessem preparadas para ir aos municípios e algumas também viessem de municípios.
Quando o táxi voador passou pelo mar em pleno voo, apareceu, outra vez, o arco-íris e fez com que eu não conseguisse ver bem a terra. Dei um grito muito alto para que aquelas pessoas me socorressem. Com os olhos fechados senti o carinho dessa gente, alguns passaram as mãos nas minhas mãos e outros passaram as mãos no meu rosto e nos meus cabelos a acariciarem-me, para que eu ficasse mais calmo e sem medo. Passaram alguns minutos. Quando eu abri os meus olhos, vi que o lugar era diferente outra vez, eu estava deitado numa cama macia e as pessoas que estavam a ajudar-me eram os meus amigos, que estavam muito preocupados e perguntavam-me se eu estava bem. Em vez de responder às suas perguntas, eu perguntei-lhes sobre a hora, o dia, o mês, o ano e o lugar em que eu estava. Eles responderam-me que eu estava no hospital e contaram-me aquilo que aconteceu. Disseram-me que eu desmaiei na praia da Areia Branca e eles receberam a informação de alguém. De seguida, levaram-me para hospital. Enquanto eu escutava a descrição do acontecimento, olhei para o relógio e para o calendário que estavam pendurados na parede do hospital, e confirmei que eram dez horas da noite, do dia vinte e um de fevereiro de dois mil vinte e três. Ora, fiquei espantado com essa sensação e senti palpitações. Contudo, eu disse aos meus amigos que já estava bem e os médicos também disseram que eu podia voltar para a casa porque eu já estava melhor. Assim, eu e os meus amigos voltámos para casa.
Por essa sensação vivida, eu imaginei que fosse um viajante do tempo ou andasse às avessas, mas recordava todos os acontecimentos e acreditava que daqui a mais de cem anos Timor-Leste viraria do avesso, porque, na minha visão, a cidade de Díli estava mudada, as casas eram prédios de vidraças, as pessoas pareciam malaes, porque eram brancas e desconheciam todas as línguas nativas que existiam nas regiões da nossa nação, mesmo que eles soubessem falar tão bem o português e o tétum padronizado. E senti muita pena das nossas línguas nativas. Dali a mais de um século, seríamos timorenses de alma morta porque perderíamos as nossas raízes e os nossos valores. Isso poderá acontecer, porque ainda não temos uma escola de arte e cultura para ensinar esses valores culturais para as crianças preservarem e salvaguardarem as nossas raízes, os nossos valores, rituais e cultura. Então, se nós dizemos que somos timorenses, é porque vivemos sempre com a nossa identidade, mas se não tivermos a nossa própria identidade, seremos timorenses sem alma. Contudo, eu espero que o avô crocodilo não deixe que as gerações futuras andem de cabeça perdida, porque Timor-Leste é o nosso amor.

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