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REPORTAGEM: Falta de ajuda pública na ilha timorense de Ataúro é teste à resiliência do setor privado
*** António Sampaio, da agência Lusa ***
Vila Mau-Meta, Timor-Leste, 22 jul 2020 (Lusa) – O ritmo compassado e mecânico das quase 20 máquinas de costura nos escritórios da Boneca de Ataúro reflete a resiliência da população da ilha localizada a norte da capital de Timor-Leste face à falta de ajuda pública.
A cooperativa que emprega 65 mulheres tem tido poucas vendas – a pandemia da covid-19 acentuou o isolamento e a crise económica que já se sente no país há uns anos – mas as costureiras continuam a produzir.
“Trabalham todos os dias. Vamos continuando a fazer. Mas estamos com muito poucas vendas, especialmente nos últimos meses”, lamenta a responsável do projeto, Virgínia Soares, em declarações à Lusa em Vila Mau-Meta, a maior localidade da ilha de Ataúro.
A Boneca de Ataúro, que tem uma loja em Díli e já conseguiu vender em Portugal e na Austrália, é, talvez, a par do mergulho, o mais conhecido cartão de visita turístico da ilha, beneficiando direta e indiretamente, diz a responsável, “10% da população” de entre 13 e 14 mil habitantes.
Parte do tecido vem de Díli, mas muitos dos produtos usados na confeção das mais de 100 peças da coleção – desde bonecas de todo o tipo, a carteiras, panos, crocodilos e outros animais – são adquiridos localmente.
“Exportar é difícil. Conseguimos vender em Portugal e na Austrália porque tivemos apoio, mas os custos de exportação são elevados”, lamenta.
“Não temos clientes porque quase não há pessoas. Acho que tivemos as últimas visitas, poucas, em junho”, sublinha.
Praticamente sem turistas, com a debandada de milhares de estrangeiros de Díli – o país está praticamente fechado desde final de março –, a Boneca de Ataúro, como muitos outros negócios, está a passar “um mau bocado”.
Não que isso se note no ritmo das mulheres, que com os pés nos pedais metálicos vão fazendo trabalhar as máquinas de costura, ou nos dedos calejados de outras, dentes avermelhados de mascar betel, que cosem cuidadosamente olhos e bocas em pequenos gatos que servem como fantoches para enfiar nos dedos.
A cooperativa produz, em média, 100 bonecas por mês – são o item mais vendido, de pano, com tranças negras e com vestidos de tais, o pano tradicional timorense – cerca de 20 sacolas, e dezenas de outras peças mais pequenas.
Os salários, magros – rondam os 80 euros por mês -, não podem aumentar quando as vendas são fracas.
Do outro lado da estrada, no projeto BioJóia, também se lamenta a falta de visitantes. Um grupo de mulheres, maioritariamente surdas-mudas, trabalha só metade do dia e ganha apenas dois dólares (1,7 euros) por jornada.
“Não temos gente. Não podemos fazer mais porque não temos quem compre”, lamenta a responsável, Teresinha da Costa Soares.
Em vitrinas de vidro e na parede, dezenas e dezenas de colares e brincos, feitos com conchas, sementes secas e outros produtos locais, esperam quem as compre.
Resiliente é também Estêvão Marques, presidente da Associação de Homestays e que tem três quartos na sua modesta casa – a “Estêvão Homestay” – que aluga por 15 dólares (13,1 euros) por noite.
Abriu o projeto em 2016 e com a ajuda do Ministério do Turismo fez alguma formação em hospitalidade, que ampliou depois na Indonésia, onde consolidou o que diz serem “os 35 critérios” necessários a quem quer trabalhar na hospitalidade e turismo.
“A situação aqui ainda não dá para fazer todos. Mas temos de fazer os principais: ambiente, segurança, água, casa de banho e bom atendimento”, explica.
A casa é rudimentar e a alimentação que oferece “é à base de produtos e pratos locais”, algo que, sublinha “os estrangeiros gostam”.
Tem tido hóspedes – agora menos devido à pandemia da covid-19 – e por isso já estava a pensar expandir, começando a construir uma casa tradicional, metade de cimento e metade de colmo, no jardim ao lado da casa principal.
Os sacos de cimento e a areia estão prontos, mas as obras tiveram de parar “porque agora não há tantos visitantes”.
Como não tem dinheiro para comprar e manter um barco a motor, vai “pela via tradicional”, com um beiro que “tem menos impacto ambiental” e que os turistas “ajudam a remar”.
“E procuro sempre apoiar a comunidade com as compras. Tentamos que a comunidade beneficie o máximo possível”, explica.
Com a crescente procura de Ataúro como destino turístico, pequenos projetos como este têm suplementado os rendimentos de muitas famílias na ilha, que mal sobrevivem da pesca e da agricultura.
“Sim, conseguimos já viver disto. Mas é preciso turistas”, explica, pedindo ao Governo que faça a sua parte e melhore as condições das estradas, da água, da eletricidade.
Um pedido que se ouve em toda a ilha onde a comunidade e o setor privado, resiliente e apesar das dificuldades, são o motor do negócio e do setor do turismo, mas onde continuam a escassear os projetos sérios do Estado.
Exemplo disso, o único gerador da ilha está sem funcionar já há quase três semanas. No início do ano foram dois meses e meio sem eletricidade.
Pequenas pensões, como a Manukoko Rek – ligada ao projeto da Boneca de Ataúro – têm de fazer o que podem: o gerador só se acende algumas horas por dia e os desafios, já significativos, só aumentam.
*** A Lusa viajou para Ataúro a convite do programa Tourism for All da USAid, no âmbito da ação de promoção de turismo doméstico #HauNiaTimorLeste ***
ASP // VM
Lusa/Fim

