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Timor e a língua portuguesa
Por João Paulo T. Esperança Tradutor-intérprete português, professor no Departamento de Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade Nacional de Timor-Leste.
artigo publicado no jornal bilingue timorense Lia Foun, de 23 setembro de 2005, com o título “Reconstruir pontes para o mundo lusófono”. Manteve-se a ortografia original, segundo a norma de 1945. 8 de janeiro de 2016
«Vem da língua portuguesa uma parte enorme do vocabulário do tétum praça, língua franca de Timor, língua nacional e língua co-oficial. Até muitos dos palavrões que os timorenses usam quando se zangam são portugueses! Esta cultura mestiça euro-asiática moderna marca a diferença e a maneira específica de os timorenses se afirmarem no contexto regional. Está aí a raiz da nacionalidade leste-timorense», escreve o autor neste artigo ainda atual, apesar de publicado há dez anos, na edição de 23/09/2005 do jornal bilingue timorense Lia Foun, uma publicação já desaparecida (ler apontamento do blogue Mosun).
Timor é indiscutivelmente parte do espaço pluricontinental de convivência multissecular a que se chama actualmente a lusofonia. Essa convivência ao longo dos séculos não foi sempre pacífica, e seria uma falsificação tentar fingir que houve apenas partilha e amizade nas relações que se foram estabelecendo entre os muitos povos que habitam as terras lusófonas. Porém, a História é o que é, e o legado dos conflitos e alianças que se sucederam através de muitas gerações é hoje principalmente uma memória de caminhos percorridos em conjunto (ainda que muitas vezes um dos caminhantes estivesse na posição de opressor e outro de oprimido) e gostos, vivências e sensibilidades com muito em comum.
Simplificando exageradamente a mensagem, digamos que o mundo lusófono é como uma grande família: apesar dos diferendos, rixas, abusos de autoridade, diferenças de opinião e de opções de vida, maneiras distintas de gerir a própria casa, revoltas e reconciliações, a verdade é que é muito difícil renegar a família, e saber onde estão as nossas raízes e os nossos ramos ajuda-nos a levar a vida para a frente com passos mais firmes.
A cultura timorense moderna é mestiça
O historiador Geoffrey Gunn escreveu que «existem duas nações crioulas na Ásia do Sudeste, as Filipinas e Timor-Leste», explicando que «as comunidades crioulas reflectem uma cultura híbrida que vão da cozinha ao vestuário, religião, transferências linguísticas e musicais». Tenho dito em diversos lugares que acho que ele tem toda a razão. Estes países foram colonizados por Espanha e Portugal, respectivamente, e por isso foram expostos a um tipo de colonialismo com uma filosofia bastante mais assimilatória, nomeadamente ao nível cultural, do que a de outras potências coloniais europeias, tendo como resultado a criação de verdadeiras sociedades mestiças euro-asiáticas.
Enquanto os holandeses, nas ilhas do que viria a ser a Indonésia, se preocupavam mais com os seus interesses mercantis, durante muito tempo não incentivando quaisquer iniciativas de proseletismo religioso nem de difusão da língua neerdandesa, os portugueses e espanhóis tinham a conversão ao catolicismo dos povos com que contactavam ou que conquistavam como uma das prioridades da sua política ultramarina. Os seus interesses económicos e geoestratégicos eram indissociáveis do esforço de expansão da sua religião.
Por isso, o Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, tinha a benção do Papa da época – segundo este acordo Portugal e Espanha, nações pioneiras na expansão marítima, haviam dividido entre ambos todo o mundo até então desconhecido dos europeus, e reclamavam para si o direito de conquista de qualquer terra ou povo que cada um encontrasse na sua metade, sendo parte do contrato que deveria proceder-se à conversão dos nativos ao catolicismo (depois a entrada em cena dos holandeses, ingleses, franceses e outros estragou os planos de hegemonia de portugueses e espanhóis).
Como resultado desta ideologia colonial a influência cultural portuguesa, e principalmente a da Igreja católica de matriz portuguesa, foi provavelmente o mais importante factor de conformação da cultura timorense moderna. As grandes religiões dominantes no resto da Ásia, nomeadamente o hinduísmo, budismo, taoísmo e islamismo, quase não tocaram Timor. E o catolicismo aqui é historicamente, e também no imaginário colectivo dos timorenses, um legado português. Seria um erro pensar que a fé católica é menos sincera devido à importância que continuam a ter as crenças e práticas religiosas animistas. A religiosidade popular não segue os cânones teológicos do Vaticano, seja em Timor ou noutros lugares do mundo, como bem sabe quem, como eu, vêm do meio do povo. Em Portugal, velha nação católica que conseguiu a independência há mais de oito séculos, a fé na Igreja mantém-se até hoje nos meios rurais ao lado da crença em bruxas e lobisomens, esconjuros e maus-olhados, e ainda se realizam muitas cerimónias cuja origem é na realidade pagã.
O que acontece em Timor é que a maior parte dos timorenses vive simultaneamente em esferas culturais que ora se sobrepõem ora se mantêm separadas: acredita-se ao mesmo tempo no poder protector do birun abençoado pelo lian-na’in do cnua dos avós e no do crucifixo que se leva na corrente pendurada ao pescoço ou da imagem de Santa Bakhita que vai pregada na camisola. Fazem-se as cerimónias animistas tradicionais aquando das colheitas, mas também se reza na missa para que a terra seja fértil e generosa. A religião tradicional costuma manter-se no entanto em círculos mais restritos (o cnua1, o suco2, a região vizinha de certa montanha, os reinos unidos por certa aliança sagrada, o grupo etnolinguístico…) e as subtilezas desses rituais não são conhecidas ou compreendidas pelos timorenses de outras regiões.
Um lian-na’in fataluco, p.ex., pode ser respeitado por um timorense baiqueno ou tocodedepela autoridade e poderes que lhe reconheçam mas o que ele diz nas suas orações passa-lhes completamente à margem. A religião católica, pelo contrário, é supra-região, os rituais são partilhados pela grande maioria dos timorenses e estes sentem que fazem parte do todo nacional dos crentes; se os rituais tradicionais específicos de cada comunidade separam, os rituais católicos unem. Noutros países de tradição católica vieram a surgir nos tempos modernos movimentos culturais seculares que, ainda que tivessem raízes na cultura influenciada pelo catolicismo dos seus países, representavam um corte com ela, mas em Timor-Leste o embrião de um tal movimento no final do período colonial português foi extinto pela invasão indonésia, já que quase todos os que poderiam ser os seus teóricos e impulsionadores foram mortos pelos ocupantes, de forma que é também essencialmente católica a cultura urbana e das elites intelectuais do país.
Podemos dizer que as pessoas em Timor têm as suas crenças religiosas organizadas como os nomes: muitos têm um nome autóctone, “gentio”, que só é usado no âmbito restrito da sua família ou cnua, ou grupo etnolinguístico; depois, têm um nome de estima, diminutivo ou hipocorístico do nome de baptismo segundo as regras fonológicas do tétum ou proveniente de uma palavra tétum, que podem usar também na família, mas tem uma abrangência social maior, incluindo os colegas da escola ou trabalho; por fim, têm um nome oficial português e cristão, que é de utilização obrigatória em situações públicas mais formais. Não há um dos nomes que seja mais correcto ou “timorense” do que os outros, cada um deles é a resposta “timorense” adequada para âmbitos sociais específicos. De forma que quase todos os timorenses têm nomes oficiais portugueses. Mesmo a maior parte dos membros da minoria timorense de etnia chinesa usa hoje um nome oficial português (não esqueçamos que a paranóia estatal indonésia anti-comunista fazia equivaler identidade chinesa a simpatia por Pequim, e aprovou mesmo em 1966 um regulamento, posto em prática no ano seguinte, coagindo os indonésios de origem chinesa a adoptar nomes que soassem mais indonésios). Os chineses timorenses fizeram de resto o mesmo que a população autóctone das montanhas fez: tendo que optar por uma das religiões reconhecidas pelo Estado indonésio escolheram em massa aquela que sentiam mais próxima, o catolicismo.
Quando os portugueses saíram de Timor em 1975 os católicos não chegavam a um terço da população; hoje, quase toda a gente é católica. A maior parte dos timorenses cumpre assim durante a vida uma vasta gama de rituais que lhes foram transmitidos pelos portugueses. As festas de casamento são semelhantes às que se faziam em Portugal e os pares dançam como ainda se dança nos bailes das aldeias portuguesas. Quando morre um familiar, anda-se um ano vestido de preto em sinal de luto como os portugueses. No Domingo de Ramos as pessoas vão benzer o ramo que depois penduram dentro de casa para afastar as desgraças e o mau-olhado, tal como é tradição em Portugal. No dia dos Fiéis Defuntos vai-se acender velas no cemitério e rezar aí pelas almas dos entes queridos já falecidos, tal como fazem as famílias portuguesas. Os timorenses benzem-se quando se admiram ou assustam com alguma coisa, como fazem os “avós” em Portugal.
Vem da língua portuguesa uma parte enorme do vocabulário do tétum-praça, língua franca de Timor, língua nacional e língua co-oficial. Até muitos dos palavrões que os timorenses usam quando se zangam são portugueses! Esta cultura mestiça euro-asiática moderna marca a diferença e a maneira específica de os timorenses se afirmarem no contexto regional. Está aí a raiz da nacionalidade leste-timorense. Os leste-timorenses são-no porque são diferentes dos indonésios, dos australianos e de outros povos da região. São leste-timorenses por causa da sua História e da sua Cultura!
Falta uma estratégia para os media
Apesar do tudo o que foi dito não se pode pensar que a cultura timorense, ou de qualquer nação, é um produto acabado, imutável. A ligação histórica com o mundo lusófono precisa de ser potencializada, promovida e aprofundada, nomeadamente no que se refere aos produtos culturais e de comunicação social consumidos pelas massas. Não se tem feito muito neste campo. O Lia Foun é uma das poucas, pouquíssimas, excepções, já que é o único jornal inteiramente bilingue, com uma equipa de jovens tradutores e jornalistas que demonstram pela sua própria existência que o português começa a não ser em Timor uma língua “de velhos”. Todos sabemos que a língua portuguesa e o tétum são as línguas oficiais de Timor-Leste, cada uma com o seu próprio papel. Nota-se porém que o acesso da população em geral, e dos jovens em particular, ao contacto com a língua portuguesa é ainda muito reduzido, mesmo nos âmbitos mais formais (escola, inter-acções com a administração) que seriam aqueles onde mais naturalmente poderia ter lugar.
Depois de seis anos do fim da ocupação indonésia, é pouco ainda o consumo da cultura popular de massas de origem lusófona em Timor, nomeadamente no que se refere aos programas televisivos. A música lusófona que se ouve nas festas de casamento é resultado da procura dos consumidores locais e mais um testemunho da ligação de Timor com esse universo, mas não tem sido ainda alvo de uma política coordenada de apoio a essa tendência. Há ainda assim alguns sinais de esperança, como a recente iniciativa, plena de sucesso, e apoiada pelo BNU e a Fundação Oriente, de organização de um festival da canção na televisão em que os jovens concorrentes imitavam estrelas da música, com uma das duas canções interpretadas a ser obrigatoriamente em língua portuguesa. A juventude (que é a esmagadora maioria da população no país) vê VCD e os DVD piratas com filmes anglo-saxónicos legendados em indonésio, e as famílias timorenses de todas as classes sociais esforçam-se para comprar uma antena parabólica para poderem assistir em casa às telenovelas indonésias ou brasileiras, mexicanas e venezuelanas dobradas em língua indonésia.