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Quando cheguei a casa, na noite de vinte e oito de Novembro, estava um senhor que eu não conhecia junto à porta fechada do prédio.
Dirigiu-se a mim, disse da parte de quem vinha e entregou-me um envelope com uma coisa dura lá dentro
era uma caneta de tinta permanente que acompanhava uma carta.
Eu vinha de velar o meu irmão na Basílica da Estrela e estava a sofrer muito. Queria estar com ele a sós para mais uma das nossas conversas privadas mas havia imensa gente e era impossível falarmos.
Lembro-me de uma senhora me perguntar como me sentia, de lhe responder que me sentia azul às riscas amarelas, de ter de cumprimentar pessoas que conhecia e não conhecia, de fugir de um bando de fotógrafos cá fora, que aparecem sempre nestas alturas, mandados pelos jornais e as revistas e com quem não me posso zangar porque não estão ali por vontade própria mas para satisfazer a morbidez dos leitores quando tudo o que me apetecia era despedir-me do meu irmão e, muito mais do que isso, ficarmos ali ambos em silêncio, que era a nossa maneira preferida de comunicar, depois de mais de vinte anos a morarmos no mesmo quarto.
Mas não queria que mais ninguém escutasse o que nós não dizíamos e sentia-me exausto e vazio, zangadíssimo com Deus, claro, que felizmente tem as costas largas e me conhece bem, zangadíssimo com a crueldade da vida, zangadíssimo de ficar sem ele conforme já me zangara com a terrível partida do Pedro e a sensação atroz de ser um homem despovoado.
Depois dos meus pais, a vida leva-me agora os meus irmãos.
Como se continua sem eles?
Como se vive quando, uma a uma, nos tiram as raízes todas?
Olhei para a bondade e a vulnerabilidade do Miguel, olhei para o Nuno que continuo a ver abraçado a um Pluto de borracha e que sempre me enterneceu porque, dentro de mim, continua a ser o meu bebé, sempre que o olho a primeira imagem é do Nuno pequenino, quase a morrer de peritonite, repetindo a chorar
(como a voz dele continua nítida em mim)
– Eu vou morrer e quero o meu paizinho
o Nuno que os cirurgiões amigos do meu pai não queriam operar com medo que a criança ficasse na mesa, que o Professor João Cid dos Santos aceitou operar e salvou
(muito obrigado, senhor Professor, sempre o admirei muito e gostei muito de si, sabia?)
E a criança, que não podia ingerir nada, a pedir
– Eu dou dinheiro a quem me der água.
Ele, o pobre, que não tinha um tostão.
E curou-se, e cresceu, e agora bebe a água que lhe apetece.
Cada vez que em casa dos meus pais eu o via beber água lembrava-me disto.
Bom, adiante!
Portanto, ao chegar a casa na noite de vinte e oito de Novembro estava um senhor que eu não conhecia junto à porta fechada do
prédio, à minha espera, de quem se distinguiam mal as feições pela falta de luz, que me entregou um envelope com uma coisa dura lá dentro e me informou que vinha da parte do senhor general Ramalho Eanes,
ou seja, traduzido
para a minha língua, de um amigo meu.
Eu sentia-me tonto e exausto para além da mágoa que trazia.
(– Eu vou morrer e quero o meu paizinho)
e da dificuldade de me trazer ao colo, com uma data de passado em cima e, pelo menos para mim, há alturas em que o passado pesa insuportavelmente, para não mencionar o presente e o futuro…se o houver, que também me doem que se farta.
Sentado na primeira cadeira que encontrei abri o envelope, que tinha dentro uma caneta Parker S1
(uma coisa que sempre quis ter e nunca tive)
e uma carta do general Ramalho Eanes, ou seja do António.
Conhecemo-nos há bastantes anos, através do nosso comum irmão Ernesto Melo Antunes e aconteceu o milagre, tão raro, de ficarmos, instantaneamente, amigos de infância.
Não há nada mais importante do que um amigo, como insistia o meu avô e eu tive a felicidade imerecida de ter amigos
excepcionais.
A carta que acompanhava a Parker e que, obviamente, não reproduzo aqui, é a mais bonita, sincera e digna que até hoje recebi e um dos mais fortes, senão o mais forte abraço que até hoje me deram.
Li-a não sei quantas vezes, continuo, ainda hoje, a lê-la de tempos a tempos:
se o meu irmão Nuno a tivesse recebido, durante a convalescença da peritonite, já não precisava de beber água.
António Lobo Antunes