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O título foi “António Fournier”, mas, depois, a pedido dele, saiu no livro Combóio com Asas, creio que com o título de Combóio do Monte.
António Fournier
Veio a minha casa falar-me de um combóio.
Era alto, jovem, um tanto encorpado, de cabelo semi-comprido aos caracóis pretos, e óculos escuros que lhe davam um ar vagamente aparentado ao da gente do cinema. Ou talvez do “show bizz”.
Poderia tocar guitarra, ser baterista de jazz, cantor, pensei olhando outra vez. Ou talvez escrevesse versos clandestinos.
Tirou o cachecol e o casaco de couro preto e sentou-se à minha frente. Trazia imagens e memórias de um combóio, que passara anos a reunir e agora ia retirando de um saco e espalhando diante de mim, como peças de um Lego.
Poderia ser qualquer coisa, pensei, excepto talvez professor da universidade de Pisa. Mais enfermeiro desse Hospital das Letras do que realmente professor, confessou. Não, não era italiano. Português, madeirense.
Aí estava a razão de um qualquer ligeiro acento, que não me parecia já madeirense, mas poderia ser de qualquer outro lugar. Acontece quando se vive muito tempo no estrangeiro, a certa altura,sem darmos conta, há um ligeiríssimo acento que se insinua.
Falava sem parar de um combóio. Desenhos, fotografias, notícias, recortes de jornal.Talvez fosse um combóio perdido na infância, ocorreu-me,sem perceber por que razão ele vinha ter comigo, porque nada sei de restauro, nem de brinquedos antigos. No entanto não se tratava de um modelo à escala, mas um combóio em tamanho natural.
Nem sequer era eléctrico, mostrou-me :
Tinha uma locomotiva a vapor, de cremalheira, e as pessoas iam sentadas às janelas, a bem dizer nem eram janelas, era quase um varandim com pequenas colunas, num espaço todo aberto. Sessenta lugares sentados, tudo inaugurado na presença do Governador Civil e do Bispo, as senhoras vestidas a preceito e os cavalheiros de bigode e chapéu.
As obras tinham começado no sítio da Confeiteira. E depois tinha vindo num navio dinamarquês, o Concorde, o primeiro material rolante. Em 1893.
(Tratava-se portanto não da infância dele, verifiquei, mas de uma infância anterior e colectiva, das memórias da ilha.)
Tudo isso se passara no Funchal, concretamente entre o Pombal e a Levada de Santa Luzia, e depois o Atalhinho (o Monte), até ao Terreiro da Luta. Sem esquecer o Chalet Restaurante Esplanada, inaugurado em 1912, e os hoteis de luxo que surgiram depois.
Havia anos que ele procurava por todo o lado exemplares de combóios assim. Até que achara um tão parecido que poderia dizer-se primo deste, no Tirol austríaco, logo depois de Innsbruck.
Chamava-se,por conseguinte, Combóio do Monte.
(Combóio perdido procura-se, para tornar a colocar no trilho antigo.)
Mas por que razão ele fazia disso uma causa? (As pessoas das ilhas são um tanto loucas, atreitas a ideias fixas, manias, delírios, visões? Fruto do muito mar em volta, da solidão, do vento?)
Agora ele mostrava-me o desenho de um combóio com asas (com asas?) e explicava como contava obter, ou tinha já obtido, a cumplicidade da Unesco.
Mas era uma corrida contra o tempo, porque já tinham começado as guerras de interesses, a especulação imobiliária. Era aí, segundo ele, que eu podia ajudar. Na corrida contra o tempo. Viera,declaradamente, em busca de auxílio.
(Dois loucos, um jovem e uma mulher madura, correm contra o tempo. Atrás de um combóio perdido).
Olho para ele, sem saber o que pensar. De seguro, só sei que também não gosto das guerras de interesses e dos especuladores imobiliários.
– Você já se interessou antes por combóios, disse ele.Penso que bati na porta certa.
(Combóios e metros . O metro de Berlim, o metro de Lisboa ,os grandes combóios e a grande estação dos Caminhos de Ferro de Lourenço Marques.)
-Não posso negar, disse eu. Há combóios que fazem parte da minha vida.
– Então apoie o Comboio do Monte, atalhou ele triunfante, como se resolvesse uma equação ou demonstrasse, matematicamente, qualquer coisa. Apadrinhe, amadrinhe, o combóio do Monte.
(Apadrinhe o Comboio do Monte. As Páginas Amarelas apadrinham a Girafa. A Atlantis apadrinha o Coala, a SmithKleine a Suricata, o Creme Nívea os Leões Marinhos).
Deitou açúcar no café, tirou um biscoito e veio sentar-se no sofá, para apontar num mapa, ao lado da estação e da linha, as casas das Gibraltinas, assim chamadas porque tinham abrigado gente fugida de Gibraltar em 18 ou 19, no rescaldo da primeira Grande Guerra.
E logo depois, também em 19, contou, deu-se a explosão que vitimou o fogueiro, o maquinista e o filho do proprietário do café-hotel Golden Gate, carbonizou a Virgínia Preceito e fez voar sobre as carruagens a Maria Preceito, da qual só ficou um cesto de vime, apanhado nos escombros pelo Raul Pereira, mestre carpinteiro, que veio depois a casar com ela.
Histórias de amores como só acontecem nas ilhas.
Sem esquecer que a Mariquinhas do Raul, como passou a ser conhecida depois disso, sobreviveu porque o guarda-freio, o senhor Manuel Marques, por alcunha “o Ratinho”, lhe apagou o fogo dos vestidos, na altura da explosão.
– Sim, penso que também vou embarcar nessa, concordei, deixando-me levar pelas histórias e apanhando o combóio em marcha, empurrado, não puxado, pela locomotiva, que ofegava ladeira acima.
Mas para baixo, em alternativa ao combóio, podia-se descer em grande velocidade nos cestos, que duram até hoje mas já não são tão emocionantes nem tão indecorosos como quando as senhoras neles se sentavam, com saias até aos pés e de sombrinha.
Nessa altura era possível ver-se de relance um tornozelo ou até parte da perna, mais acima.A mãe de Fernando Pessoa quase teve um acidente ao descer no cesto de um passeio ao Monte. Em cuja igreja, convém saber, está sepultado um imperador do finado império austro-húngaro (para que conste: Carlos de Habsburgo, marido de Zita de Bourbon e Parma).
No entanto havia gente que não esperava pelo combóio nem pelos cestos para descer do Monte, sentava-se numa pedra polida e deslizava a grande velocidade sobre os carris, encosta abaixo. O que enfurecia a Companhia, porque além do desgaste podia deixar pedaços de pedra nos carris e perturbar a marcha.
O Monte era a Sintra da ilha, ao lado da Camacha ou do Santo da Serra. Os jornais anunciavam a partida ou o regresso das famílias gradas, saídas do Funchal para o Monte, a veraneio.
Depois o combóio acabou (trata-se apenas, naturalmente, da sua história muito abreviada). O último exemplar foi comprado por um homem do Porto, que se deslocou expressamente ao Funchal para o leilão. Houve pedaços dos carris postos a reforçar estruturas de prédios ,tudo se desfez para sucata e foi uma coisa triste de se ver.
Mas podia voltar-se atrás. Recuperar-se. Restaurar, reinstalar o combóio do Monte. Bastava um punhado de gente a empurrar com força, diz ele dobrando jornais, fotografias, desenhos e papeis e metendo tudo outra vez no saco.
Tem às vezes um riso nervoso. Como o de Mozart no filme de Forman. Lê-me alguns versos de um poema de Herberto Helder e fala-me de uma casa de José Barrias.Também os quer ligar ao projecto, a Helder e Barrias. Entre outros.Vai-nos prendendo a todos, numa mesma corda.
(A Corda, ocorre-me.O filme de Hitchcock. Por alguma razão imaginei logo que ele poderia estar ligado ao cinema. Era um filme que ele estava a fazer connosco, sem sabermos. Prendia-nos com uma corda, que ele ia puxando. Éramos nós o combóio, ligados uns aos outros como carruagens. Ele era a locomotiva.)
Ao contrário de Hitchcock, não é a nossa morte que ele quer. Mas está a montar uma cena, o filme é uma encenação e um espectáculo. A certa altura a cortina sobe e o combóio começa outra vez a subir o Monte. De repente fica muito visível,nos recortes de jornais, como num teatrinho de papel.
– Está bem,digo. Pode contar comigo.
Pergunta se pode fotografar-me. Para o seu arquivo pessoal.
Digo que sim (não tenho razões para dizer que não) e volto-me para a objectiva. (Ele está portanto finalmente atrás de uma câmara,o que não me surpreende).
Fui contagiada pela loucura dele, concluo enquanto se despede. Aceitei tudo, até o desenho de um comboio com asas. Mas não vejo nisso nenhum mal. Sonhos e loucuras combinam bem comigo.
Teolinda Gersão