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TAMBÉM JÁ FUI AO ESPAÇO
Presumo que os leitores tenham concluído, pela leitura do título, que a crónica seria sobre a viagem ao espaço de Mário Ferreira, que se auto-intitulou como o “primeiro português no espaço”. Os mais atentos às crónicas de Verão, poderão ter achado que o título seria apenas um chamariz para a sua leitura integral., porque é um dos problemas das crónicas em época estival: as solicitações são muitas e a leitura dos jornais fica-se, muitas vezes, pelos títulos. Por vezes, alguns leitores generosos, falam-me da crónica, quase sempre fazendo uma simpática referência ao título. Ao longo dos anos fui aprendendo as subtilezas destas conversas e já sei que, quando é assim, o meu interlocutor apenas leu o título, pelo que me resta agradecer e mudar de assunto com cuidado.
Já estou a divagar, sem me referir a outros leitores que pensaram que o autor escolheu um título invejoso, um pouco pretensioso, como se alguma vez tivesse pago milhares de euros para uma viagem espacial.
A verdade é que já fui mesmo ao espaço, ao longo da vida. Lembro-me dos meus tempos de escola primária – bem sei que agora é primeiro ciclo do ensino básico – em Vila do Porto, em que as idas ao espaço eram frequentes e com algumas longas permanências, que batem os escassos minutos desta moderna viagem. Como já sabia ler e escrever algumas palavras quanto entrei para a primeira classe, tinha uma vantagem sobre os meus colegas: enquanto eles se esforçavam laboriosamente por cumprir com as indicações da nossa professora, eu vagueava mentalmente para fora da sala de aulas, perdido na imaginação e sem perdão do relógio. Os meus colegas acabavam os trabalhos e iam para o recreio e o atrasado cronista acabava por ficar mais uns minutos na sala de aula, para concluir as tarefas, não sem antes ouvir a D. Alice – a minha professora – a perguntar-me: “estiveste outra vez na lua?” A resposta tímida não confirmava ou desmentia a afirmação, num precoce afloramento da vocação de advogado.
Estas deambulações não aconteciam apenas comigo, que não era bicho raro. A pergunta corria toda a sala, sempre que o andamento dos trabalhos não correspondia ao desejo da professora. Por vezes, a referência à lua era substituída por Marte que, sendo um planeta, ao contrário da lua, não melhorava a coisa.
Muito embora tivéssemos de saber o nome dos planetas, numa cantilena de que ainda hoje me recordo, não me lembro de alguém ter sido remetido para Plutão, que ao tempo ainda partilhava a categoria de planeta e ocupava o último lugar da cantilena. Só agora me apercebo que a despromoção que ciência fez de Plutão, em 2006, passando-o para categoria de planeta-anão, afinal traduz uma reiterada prática social.
Não sou o único a reivindicar o estatuto de viajante no espaço, cruzando a Linha de Kármán (linha a 100 quilómetros de altitude, que corresponde ao limite internacionalmente considerado como espaço). Qual de nós nunca esteve aluado, essa curiosa condição que assinala a dissociação entre a presença física do corpo e a ausência do espírito, que procura lugares mais aprazíveis?
O estar aluado é bem mais difícil do que cruzar aquela fronteira do espaço. Exige anos de treino para ser bem feito, para que os outros não percebam que está a acontecer. Quando este nível se atinge, entramos noutra galáxia (cá está mais uma referência). E isto arruma num canto a viagem do Senhor Ferreira.
(Publicado a 10 de Agosto de 2022, no Açoriano Oriental)
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- Sonia Borges de SousaNo proprio dia escrevi que muitas vezes fora ao espaço, com uma diferença a descuda era num apice perante um Soniazinha cantado( mania de algarvios… diminuitivo quanto maior e mais cantado maior a corrida) ou uma rabada porque o caderno dos tpc estava em branco.
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Patricia SkrzypietzVou muitas vezes… e cada vez quero ficar mais la do que por aqui…Parabénsmais uma vez pela crónica.
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