Notas sobre uma obra perdida
Antes de mais agradeço, sensibilizado, a recordação que a Casa dos Açores, em Lisboa, decidiu fazer de meu pai, nascido a 12 de Fevereiro de 1904, e deixo aqui, como colaboração, a memória possível de uma obra dele, interessantíssima, por várias razões, mas de que não conheço qualquer fotografia, reprodução ou apontamento desenhado.
Trata-se do conjunto de pinturas murais, ou painéis, se os entendermos assim, executados nas paredes de uma sala da Pediatria, no 5º piso do novíssimo Hospital de Santo Espírito, inaugurado em 1961, em Angra do Heroísmo.
Comecemos por referir que a Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo tinha, desde meados do século XIX, o seu Hospital de Santo Espírito instalado no antigo Convento da Conceição, à Guarita, na parte alta da cidade de Angra do Heroísmo. Em meados do século XX já não conseguia desempenhar as suas funções.
Surgiu, então, um novo edifício, de desenho absolutamente contemporâneo, com cinco pisos e os únicos elevadores da ilha, à época, preâmbulo premonitório, em Angra, segundo o desejo de vários na ilha, da tendência das novas cidades para os arranha céus.
O diretor da Escola Industrial e Comercial de Angra do Heroísmo era o engenheiro Rodrigues Teixeira que, ali, fazia tirocínio para professor metodólogo do Liceu Pedro Nunes. Interessava-lhe curriculum e, ao Ministério das Obras Públicas, Direção Geral das
Construções Hospitalares, interessava um técnico capaz de exercer as funções de fiscal que acompanhasse a obra.
O convite e a aceitação surgiram, assim, naturalmente.
Meu pai, por outro lado, deixara de estar ligado, em 1960, à dita Escola, onde lecionara e desempenhara diversas outras funções, durante décadas. Ele e Rodrigues Teixeira, ambos senhores de personalidades fortes, haviam-se afastado de relações profissionais estreitas, como forma de preservar alguma amizade e o respeito mútuo.
Rodrigues Teixeira decidiu que a Sala da Pediatria, onde as crianças permaneciam, quando internadas ou em convalescença antes da alta, devia ter um aspeto novo e diferente. Em conversa com meu pai acabou por contratá-lo, dando-lhe carta branca para decorar a sala e torná-la acolhedora.
Em 1961 eu tinha uns 7 para 8 anos e aquilo que vos deixo aqui são as minhas memórias de um deslumbramento de criança ao visitar, de mão dada com minha mãe, um pai muito maior que eu, que, no cimo de um escadote de madeira, estava a colorir as paredes de uma sala e a preenchê-las com formas, letras e outras coisas.
Tudo estava cheio de cores claras, agradáveis à vista, suponho que entre o azulado, o rosa e o amarelo suave. Por cima dessa base, digamos assim, havia triângulos, quadrados, circunferências, pirâmides, esferas, cubos, cilindros. Pequenas e grandes, maiúsculas e minúsculas, de imprensa ou cursivas, havia também letras, espalhadas, às vezes tortas.
De três rumos tenho ideia clara: não eram muitas as coisas, deixando espaço de descanso ao olhar, entre umas e outras; as cores eram vivas, mas não berrantes, agradáveis, embalando a visão e prendendo; tudo aquilo como que saltitava, mas sem frenesim, dando uma permanente sensação de calma e repouso.
Explicando à minha mãe, que me segurava a mão, mas não o olhar, lembro-me, apenas, de pedaços de frases como “os pequenos, coitados, estão aqui, às vezes dias. Tinha que os alegrar.” Ou “não pintei muitas coisas, mas as mães sempre vão poder aproveitar as que aqui estão para falar das cores, das formas geométricas, das letras. Dão alguma distração.”
Quando, anos depois, a Pediatria foi mudada de posição dentro do Hospital de Angra, acho que resolveram, simplesmente, pintar as paredes e fazer desaparecer tudo.
Percebendo que um hospital é uma estrutura em permanente adaptação e evolução, a única queixa que tenho é de não ter nenhuma fotografia ou apontamento deste trabalho dele, para além da minha memória de menino, naturalmente falível.
É que se estava nos anos sessenta do século XX, quando estas ideias e preocupações com o conforto infantil, em ambiente hospitalar, ainda eram, mesmo, muito novidade. Acredito que esta foi uma realização muito interessante, a julgar pela marca que deixou em mim, a ponto de me recordar mais das paredes coloridas que da conversa, e que merece ser recordada e arquivada, pelo menos desta forma.
Obrigado à Casa dos Açores por esta oportunidade e ocasião.