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e-33 o futuro é hoje ago 10 1972
era como sentir um deus dentro de mim e depois aquilo começava a mexer, a mexer, borbotando, saía da pele, trespassando os ossos, raspando o ar ao mesmo tempo que as mãos: como quem corta um pão enquanto permanece imutavelmente estático, sem queixas, sem gemidos nem dores, moldado ao gesto, elástico.
…
era como sentir o tempo parado amanhã e apenas se visse o futuro em tudo, até no nevoeiro que crescendo dentro de nós já era húmido cacimbo, lá fora objetos mudos, quietos como jamais, nem dez segundos tinham passado e já era amanhã, vermelho, gorgolejante (o futuro às vezes pregava destas partidas).
olhos sem brilho desorbitados, vagos, num qualquer espaço que nenhum de nós sabia identificar: como se estivéssemos do lado de lá e quando nos mirássemos, esconder-mos-íamos com pavor.
então, vinha o espelho, as pessoas perguntavam por si próprias e as imagens lá perduravam, as pessoas não.
os rostos abrigavam-se num qualquer buraco à procura da luz que não vem dos buracos, já era dia, as ideias cavalgavam os minutos à desfilada por entre mudos sorrisos tolerantes de loucura. ninguém acreditava na linguagem dos olhos que já eram pó e habitavam um qualquer caixão. no entanto, ali estavam indesmentíveis, lembrando-nos como continuávamos vivos, de pé, naquele templo de morte.
era costume pendurarmo-nos no tempo e os minutos eternos e futuros brincavam connosco, puxando-nos as cordas para nos balançarmos aflitos e temerosos já que não saberíamos viver noutro tempo.
e já tudo era música, vinha dos olhos, penetrava o sexo até os dentes rangerem de prazer. tudo era música incluindo o encarnado das paredes nuas (jamais haviam sido caiadas – como numa acusação) e vinha dos poros de suor, do cabelo empastado como bolas à chuva de verão (que jamais tombará!). sempre a música, na luz, nos sons irrepetidos, mijando na lua, na poesia, na inutilidade de corrermos atrás do que sempre nos fugirá, irremediavelmente parados num vasto campo atulhado de urnas vazias – JAMAIS ALGUÉM EXISTIU LÁ. –
o som alucinado, as pessoas bem bebidas saindo com passos trôpegos, proclamando profissões entre confissões que nunca serão assinadas porque sinceras.
e um cão sem sexo pois nunca foi cão, encosta-se a um poste, fitámos o animal como se ele existisse e nos chamasse e houvesse poste, depois afagávamo-lo com o olhar, dormiríamos descansados com o poste seco, sempre esteve, apenas poste, nada mais.
um gato mia lugubremente a um guarda-noturno, sem rua nem farda, pois nunca foi admitido e continua a viver iludido, enquanto lhe pagam a fome com sorrisos de comiseração, e diariamente se arrasta pelas portas que lá não estão mas deviam, e já há quem lhe atire pedras, as quais não lhe acertando o trespassam, caindo atrás dele como se não o tivessem atingido, o que é mentira, pois as pedras tombam magoadas com restos de sangue coagulado, e o sangue das pedras é vermelho como o das estrelas que não brilham enquanto houver uma chávena de café para estancar o sangue com merda.
já é noite, sempre o foi, mas o sol não acreditou até ver uma ratazana morta de medo e um polícia à paisana num bordel, vestido de luxo como morcego de raça, por entre pedras preciosas de mil enganos fosforecendo na treva.
um mendigo busca um lato de lixo bem conservado e próspero para deitar os seus restos (que civismo! – comentarão e a esses responderei que nada disto existiu). depois, alguém irá, na sua opulência, remexê-los (inventar-lhes-á um nome, talvez banquete, palavra que conhece por ouvir dizer) e continuará de mãos bem estendidas sem que alguém vá e as acaricie (exceto com a saliva do desdém).
a rua vazia como se ninguém a ativesse atravessado desde há séculos, o que também é mentira (outra), pois das pessoas sobraram sombras (ficam sempre para alguém ir e guardá-las) e cabeças de crianças que não nasceram, espetadas no chão para exemplo.
passavam sem as verem, pisavam-nas e elas sem um grito, até que uma tropeçou e todos se calaram, era tarde, já chegara a hora de recolher, não havia tempo de arquivar imagens de agonia. já as gentes voavam mesmo sem quererem, incapazes de saberem como evitar pisar essas flores estranhas que ninguém colheria.
cansadas em casa sem asas nem memória (que esta é uma dor), queriam dormir tranquilas e drogavam-se, pílulas coloridas, cada uma era cabeça de criança em tamanho de alfinete sem ponta nem voz.
o sangue jorrando continuadamente como cascata em sonhos, como alguém quase a afogar-se querendo acordar para não morrer e logo acordando nadavam desesperadamente, não havia já quarto ou sala ou casa e ninguém restava para se lhe narrar o sonho.
era assim naquele tempo até que um génio inventou a fala e todos gritaram como se fora vital, então, outrem gritou a lembrança de que já antes se entendiam por gestos e daí nasceu o silêncio.
depois o hábito, o esquecimento, sem saberem o que existira antes do silêncio, e então já eram sapos de enormes bocas abertas, nem precisavam de nadar para (não) morrerem, pegajosos agarravam-se à paisagem evitando a todo o custo cair nela, dando-lhe cor sem movimento; como tinham o dom genial da voz sempre que respiravam e não sabiam que o faziam, logo morriam de novo (desta vez sufocados).
filmes mudos não havia, eram todos toupeiras à custa de terem os olhos vendados (para não dizerem do que viam), escavavam, sem uma palavra, incitamento, e tudo ruía por toda a parte.
deus não fora ainda inventado – nem era preciso – ninguém pensava e se o faziam, pensavam que não podiam, e acreditavam que não (assim estava determinado para não se contestarem dogmas).
foi nessa altura que a estrela se intitulou um qualquer nome e desatou a rodopiar, percorrendo o espaço em fuga interestelar, deixando para trás um rasto invisível que só tomava forma na imaginação das outras estrelas, as quais vinham de noite passear o cosmos, afastando poeira à sua passagem, desafiando o tempo, essa sucessão de instantes inacabados, infindavelmente continuados e perdidos desde o início, pois tudo foi sempiterno (até o silêncio) por nunca ter existido.
…
esta noção de amanhã é falsa, equívoca, ainda falta inventar o “agora” como quem pede desculpa e não sabe, e já de trás todos gritam dizendo que sim para se suspenderem da sua total ignorância sem terem de admitir e confessar a sua inexistência, e então, de novo, inventam algo chamado “ontem” para se autodesculparem, e logo lhes agradecemos sem sabermos porquê.
não estamos desesperados para nos suicidarmos com palavras, lá no íntimo nem a certeza de termos jamais nascido, tudo vago, sem contornos, sem cor nem forma.
e.35. a um natal que nunca chegou a ser. dez, 26. 1972
algo sem nome, premeditado (como quando se vê um boneco de barro decapitado), agitava-me pelos milhares longínquos demograficamente mortos no cataclismo nicaraguano.
correndo, desenfreado, retomava consciência do meu corpo, ofegante.
parava perscrutando o brumoso ar que a cidade me reservara: sempre igual, monótona, saturante.
virava costas, enganando-me com um qualquer sorriso de ocasião (dos que chegavam apócrifos e vinham pousar nos meus olhos desencantados) e seguia, buscando na extremidade dos meus sapatos uma solução: a resposta.
caminhava, alheado de mim e da catástrofe, as respostas variavam obcecantes – vãs esperanças em cada passada – à distância exata de mim próprio.
pontapeava uma razão nova, uma ordem nova por entre a terra enlameada (chegaria muito mais tarde).
atitude política – diriam, mais tarde, os carrascos do tribunal das ideias repetidas – mas, foi assim que [em 1972] cheguei à idade de 23 (vinte e três), já o vento da insatisfação varria a casa estranha da experiência por soletrar.
transido chegou dezembro como quem anuncia a lua nova, o natal, porquê negá-lo?
havia luzes, é certo, um pinheiro engalanado como quem quer depor palavras gastas, nunca inventadas (afinal, sempre existiram).
tudo era decalcado, espelhado, até mesmo os sapatos na chaminé-mistério, não fossem os miúdos desconfiar…
nascia revivificado um sorriso arrancado à força, as frases de ocasião e o mais.
no entanto algo destoava – talvez eu – naquele universo de múmias empoadas, até meus pais quereriam sentir-se diferentes mas não conseguiam, apreensivos, por todos os natais arderem tão depressa, impiedosamente.
tudo me irritava, músculos faciais contraídos (seria aquele o sorriso próprio?), acabrunhado pelos bolos, pelos doces tão tradicionaizinhos, tão habituaizinhos, tão sem-senso.
no instante futuro dei comigo do lado de fora, especado de pé à porta, como um estranho, nunca como mendigo pois é aviltante pedir no natal, usufruindo da pseudo-tomada de consciência dos incoerentes habitantes-do-dia-a-dia.
jamais esqueci o horror, a afronta sacrílega de ter saído na mais bela noite do ano, de amor e compreensão universais, blá, blá, blá e blá.
andei à sorte, nem sei já por onde, em que nuas e ventosas calçadas e ruas.
nem um só café aberto aquela hora, era natal e eu só na cidade sem rosto, só com os meus passos vagabundos errando sob catadupas de luz.
nem um carro, apenas aqui e além o alarido quente de casas habitadas.
até os pobres haviam emigrado.
desci até à baixa, lá onde as pessoas e as gentes se acotovelam pejando ruas e passeios durante o dia, e nem um guarda-noturno (será que os ladrões não comemoram o natal?), nem um lixeiro, nem um bêbedo, ninguém da fauna costumeira.
num solitário banco de madeira deixei que o tempo voasse sobre nós com aquela carícia quente de quem já não mede.
indiferente ao frio pensei, deitei contas à vida, senti-me infinitamente minúsculo ali no centro da minha curiosidade, da minha sinceridade ofendida.
ergui-me (muitas estrelas haviam já aparecido e passado sobre mim, alheadas da data-estátua-de-todos-os-calendários), voltei a casa, mãos vazias e vagas, todo eu me desvanecia na conclusão a que chegara.
em casa, as pessoas endomingadas, caras alegres, cor de tição (ou seria carmim?), o bom fogo, a alimentação farta, as conversas amenas e despreocupadas de natal (que tal achas o meu vestido para a “passagem”? as notas do …inho foram muito boas e as tuas …inha?), por vezes a puxarem ao sentimento (quem sabe onde estaremos nós daqui a um ano?), para resvalarem até à queixa familiar e improfícua da enorme subida do custo de vida, etc.,.
então, não sei bem porquê fiz-lhes sentir que já nascera e estava ali acordado, discuti com raiva, berrei (talvez tenha também falado), gesticulei enquanto me deixaram, agitei as pseudotranquilas consciências, adormecidas pelo calor de rebanho que ali eram; gritei tudo o que era verdade e haviam calado, afirmei direitos, incongruências, apelei para a falta de senso de semelhante reunião onde tudo cheirava a mofo (até as ideias), falso e malsão, derrubei as fachadas, as palavrinhas doces (próprias das sobremesas).
vi os rostos animados e alegres transfigurarem-se, afogueados, incomodados – quase até à congestão – ai, cambaleei no ardor excessivo da nova luta e calaram-me, isto é, calei-me, esgrimira sozinho até me sentir acossado e ninguém me perdoaria por ter despertado o que se esforçavam por manter em permanente letargo.
jamais esqueci esse natal, o primeiro, talvez único, em que senti a plenitude do seu significado.
era como ver presépios nus, árvores tão-só árvores, homens sem roupagens de fingimento, sem esses falsos trejeitos de fraternidade, sem caridade instituída por calendário, derrotados, amarfanhados como se fossem homens – nada mais.
vi-os a todos vencidos, como maus atores, péssimos amadores sem terem ensaiado a peça que só é levada à cena uma vez ao ano, e, conscientes da exigência do público sempre predisposto a deles exigir tudo.
foi um dia, talvez igual, mas um natal diferente sem esoterismos, mas mais sentido na sua milimétrica dimensão.
nesse longínquo ano não nasceu o menino-jesus para eterno descanso do homem, nem houve um pai-natal descendo da chaminé, foi um dia (de natal) como todos, triste…morrera apenas uma decrépita tradição, ultrapassada pela rotina de cada dia, com a beleza gasta dos astros que não brilham porque incansavelmente lutam pelo direito à vida.
para além do espanto amordaçado às bocas estarrecidas, para além da incompreensão, as crianças ficaram marcadas, perdida que foi a ingenuidade, não pularam, nem tampouco gritaram de alegria.
as prendas pareceram muito mais modestas (aliás, pareceram ter o seu valor real e exato), as caras, outrora gaiatas, moldaram-se fúnebres, enquanto as cabeças abanavam lentamente (último refúgio), para não aceitarem o pesadelo, um estranho (já não eu) rompera as tréguas do natal, algo se perdera para sempre, talvez a quase-sensação de paz eterna e imorredoira.
hoje, já quando a voz se me entaramela um pouco ao peso dos anos (consumidos numa voragem acelerada) escuto um quase-vazio dentro de mim, como um tremendo “punch” por ter perdido o meu natal.
lá fora, a vozearia, a alegre música da exaltação infantil, movimento desenfreado perpetua-se a data-acontecimento, as ruas regurgitam, há crianças impacientes e ainda ingénuas (até quando?) que anseiam pela hora sagrada de descobrir a chaminé como fonte de mistérios dum só momento.
algures, longe no tempo ou no espaço, outras combatem uma qualquer guerra sem idades, ou choram à chuva, ao frio, ao medo e ao vento seco da fome, na ignorância dessa palavra quente e mágica: natal.
tiritam, unhas fincadas na pele que escorre dos dedos, ossos sorvendo o calor das pedras e dos remendos multitudinários.
hoje para elas é dia de jejum (mais um!) porque ignoram que não é Páscoa.
só amanhã ou mesmo já logo pela madrugada haverá restos nos latos de lixo (para elas é sempre amanhã, é amanhã a resposta única que a esperança tem para calar o hoje).
também hoje morrerá gente, para sempre, aqui ou na Nicarágua, em guerras, calamidades, acidentes ou incidentes, do mesmo modo que naquele já longínquo ano morreu a tradição.
por tudo isto, estou mais só, triste e apagado: a partir de hoje já não tenho natal