situação séria, aterrar um cessna

Artigo de opinião de Henrique Costa Santos, publicado na revista Visão em 16 de Maio de 2022.
Uma situação séria.
Somos, aliás, todos ateus até que a pessoa do outro lado do telefone não percebe as instruções à terceira.
Da próxima vez que estiver perto de bradar aos céus porque o interlocutor não está a apanhar as indicações, lembre-se desta aterragem.
Esta semana, um passageiro sem qualquer experiência de pilotagem conseguiu aterrar um avião no maior aeroporto da Flórida, com o piloto desfalecido a seu lado.
No registo áudio divulgado pelo Live Air Traffic, conseguimos ouvir o passageiro a dizer à central de controlo
“estou aqui numa situação séria. O meu piloto está incapacitado e eu não faço ideia de como pilotar um avião”.
Por favor, pense nisto antes de voltar a dizer que está perante uma situação séria.
Habemus herói.
A primeira resposta que obteve ao pedir ajuda pelo rádio foi “Qual é a sua localização?”.
Mas o passageiro, no instante piloto, também não fazia ideia.
“Consigo ver a costa da Flórida”.
Maravilhoso.
Robert Morgan, o controlador de tráfego aéreo que recebeu a comunicação, decidiu dar-lhe instruções sobre como aterrar o avião – nunca tendo, também ele próprio, pilotado uma aeronave daquele modelo.
Em tempo real, procurou uma imagem do painel de instrumentos do Cessna 208 e improvisou uma lição de voo, encaminhando-o até ao aeroporto internacional de Palm Beach – o local próximo com a pista mais larga possível.
Há uma ideia famosa, simplificação de uma discussão teológica, que afirma: “somos todos ateus até que o avião começa a cair”.
Sendo básica à partida, a frase tem a particularidade de poder servir de argumento, tanto a crentes, como a ateus.
Para os crentes, é uma tirada sarcástica que impõe limites ao espírito ateísta, como quem diz “são muito terra-a-terra, mas chamam por Deus quando o medo aperta”.
Para os ateus, a ideia cola à crença em Deus o caráter de um recurso irracional perante o pânico e o desespero.
Neste caso, sabemos que o sangue frio salvou o dia.
De acordo com o controlador aéreo, o passageiro “estava muito calmo”.
Ouvindo os áudios, não restam dúvidas.
Das duas, uma: ou estamos perante um ateu férreo, certo de que só ele se pode ajudar a si mesmo, ou perante um crente inabalável, certo de que ainda não chegou a sua hora.
Como o cavaleiro de Bergman, o passageiro de Morgan enganou a morte.
Ajudar alguém, dando-lhe instruções remotamente, pode ser desafiante.
Mesmo quem não trabalha num call center já teve de prestar auxílio a uma mãe às aranhas com o smartphone, ou a um avô quase náufrago no Google.
É coisa que pode ser muito exigente.
Somos, aliás, todos ateus até que a pessoa do outro lado do telefone não percebe as instruções à terceira.
Da próxima vez que estiver perto de bradar aos céus porque o interlocutor não está a apanhar as indicações, lembre-se desta aterragem.
Valeu a pena o esforço.
Já com os pés na terra, o passageiro não ficou para os aplausos.
Seguiu a correr para casa, onde a mulher, grávida, o esperava.
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