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«Terramoto»? Ou será «terremoto»? Ou «sismo»?Uma noite agitada leva-me a voltar a esta página e às crónicas sobre a língua.
Localização aproximada (a sério) 1. Filhos e tremoresEm Janeiro de 2020, muito antes de os adultos se preocuparem a sério com um certo vírus, os miúdos da escola do Simão, o meu filho mais velho, já não paravam de falar de um perigo longínquo que vinha aí. O Simão tinha então sete anos e, com algum medo, falou-me da obsessão das conversas do recreio e eu fiz o que fazem os pais: acalmei-o. Caí no erro de dizer que não iria acontecer nada de especial. Semanas depois, fechados em casa, o miúdo fazia questão de me lembrar, muitas vezes e a rir (é o que vale), a minha frase infeliz. Ontem, ao final da tarde, ainda a deixar passar os dias de férias, pusemo-nos os quatro a ver canais de televisão ao calhas. Parámos num daqueles canais sempre a dar filmes e começámos a ver cenas de um terramoto. Os miúdos ainda viram uns segundos das cenas de destruição e ficaram com um certo respeito (digamos assim). O filme era uma daquelas películas todas parecidas umas com as outras em que o mundo quase que acaba e, no fim, há uma bandeira dos EUA a ondear. O título era San Andreas. A famosa falha de Santo André… Não caí de novo no erro de dizer que aquilo não pode acontecer — tanto o Simão como o Matias sabem que um terramoto é possível. Disse-lhes apenas que não era muito provável que acontecesse hoje. Ainda por cima, nem sequer estamos em Lisboa, terra de tremores famosos. Estamos a passar uns dias em Vila Nova de Santo André. Só que este Santo André não é o da Califórnia. Estamos seguros, aqui. 2. Eis senão quando…Horas depois, estava a dormir sossegado, com o Simão ao lado (nas férias andamos sempre trocados). De repente, acordo com as janelas a abanar. Ventania? Se era ventania, conseguia pôr as camas a tremer também. O Simão acorda e olha para mim: o que é isto? E eu: bolas, nunca mais digo nada. Também há uma falha no nosso Santo André? Vamos ter uma bandeira portuguesa a ondear no final do nosso filme, com o país em ruínas? A Zélia acorda também. O Matias dorme sossegado (de manhã, ficou um pouco triste por não ter tido a oportunidade de se acagaçar com o resto da família). Em poucos segundos, passou. Não, não é desta. Como qualquer português prevenido, vou ao telemóvel. No Twitter, já havia publicações a mostrar onde tinha sido o epicentro: aqui mesmo a poucos quilómetros de onde estamos (mas enterrado por baixo do mar). O Google a ajudar a localizar o sismo. Estamos no ponto azul… Fomos dormir. Ou melhor: fomos tentar dormir. Aproveitei a insónia sísmica para pensar que tinha de voltar a escrever regularmente nesta página, voltar ao início, quando ganhei este vício de escrever sobre a língua e sobre as línguas, antes de desatar a fazer vídeos sobre o mesmo tema. Pois bem: volto à página. O tema só pode ser este: terramotos. 3. A origem de «terramoto» e de «sismo»«Terramoto» é uma palavra antiga (afinal, sempre os tivemos, por cá), de origem latina. Vem de «terraemotus», ou seja, «movimento da terra». Esse «moto» era uma forma do verbo que veio a dar origem ao nosso «mover». A forma mais antiga da palavra, em português, é «terremoto». No entanto, há muito que começámos a ver, na escrita, a variante «terramoto», por influência da palavra «terra». A palavra, depois de tremer durante uns séculos, estabilizou como «terremoto» no Brasil e como «terramoto» em Portugal (as duas formas estão nos dicionários). Além de «terramoto», nas suas duas formas, existe ainda «tremor de terra» e «abalo». Ao lado desses termos tradicionais, temos ainda, como é sabido, a palavra «sismo» — os pergaminhos gregos da palavra escondem a sua juventude. Embora já existisse antes (pelo menos em francês e em italiano), só no século XX se vulgarizou o termo e as suas derivadas na nossa língua. Ninguém, por altura do terramoto de 1755, diria «sismo». Uma palavra pode ser recente e ter dentro de si elementos muito antigos. Os materiais gregos e latinos estão numa espécie de armazém da língua, sempre ao dispor de quem precisa de criar palavras. Aliás, estão no armazém de muitas línguas — quando uma se lembra de produzir um novo vocábulo, há muitos casos em que as outras vão ao mesmo armazém e copiam a criação, à sua maneira. 4. Uma arrumação recenteCom o crescente uso de «sismo», ocorreu uma especialização de «terremoto»: passou a ser usado, em geral, para sismos de grande intensidade. Passámos a ter:
Agora, onde começa um tremor e acaba um terramoto fica ao critério de cada um… Ao longo do tempo, as palavras mudam não só na forma, mas também naquilo que abarcam do mundo. As definições técnicas tentam arrumar estes constantes tremores semânticos, mas no dia-a-dia vivemos num mundo linguístico mais fluido que fixo (o nosso cérebro não se importa). 5. Estragos e praiasA insónia passou. Dormimos algumas horas. De manhã, o nosso tremor de Santo André serviu para falarmos do que fazer quando passarmos por um terramoto daqueles mais a sério. Curiosamente, o caso até parece que lhes tirou o medo de falar do tema. O Matias, que não acordou durante o abalo, quis ver todas as imagens possíveis a passar em repetição nos canais de notícias. Apareceu, lá pelo meio, o estrago material deste nosso terramoto: um rodapé um pouco maltratado (a culpa foi do sismo ou foi dum rato; não percebi bem). Enfim: as imagens das câmaras a tremer eram bem menos assustadoras que o filme da véspera. Santo André por Santo André, preferimos este. Agora, vamos para a praia — pode ser que a próxima crónica seja sobre essa palavra, que também tem muito que se lhe diga. E, pronto, foi a primeira desta nova série de crónicas sobre a língua. Peço-lhe que partilhe por mais pessoas. Já agora, não se esqueça que tem ao dispor uma página para encomendar os meus livros (muito em breve darei notícias sobre o mais recente, que sai em Outubro). Obrigado! Se quiser, pode seguir o meu trabalho no WhatsApp. Não se esqueça de activar as notificações (o sino na parte superior do canal). Muito obrigado! Pode encontrar os meus livros nesta página. Obrigado!
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