salve-se o sns

Uma memória.
Salve-se o SNS. In memoriam de António Arnaut
Conheci António Arnaut em casa de Miguel Torga. Lembro-me de estarmos juntos em Quarteira, em Agosto de 1978, onde o casal Arnaut passava férias em conjunto com Torga e Andrée Rocha. Ali festejámos o aniversário do escritor, juntamente com Sophia de Mello Breyner Andresen e o seu marido Francisco Sousa Tavares. Arnaut falava muito connosco (um bando de jovens, que incluía Clara Rocha, a passar férias em Olhão em casa de um amigo comum) do Serviço Nacional de Saúde, tendo como principais interlocutores o Carlos, hoje meu marido, e os nossos amigos António Ramires e Isabel Faria, todos estudantes de Medicina. Jamais esquecerei o genuíno entusiasmo com que Arnaut aludia à urgência de um SNS, em cujo projeto de lei estava então envolvido. Os seus olhos brilhavam quando falava da iminente abertura dos serviços médicos a todos os cidadãos, independentemente da sua capacidade contributiva, garantindo a universalidade e a gratuitidade dos cuidados. António Arnaut considerava o SNS um dos frutos mais importantes e generosos da Revolução de Abril, no que era por todos nós secundado. O despacho ministerial que havia sido publicado uns dias antes, conhecido por «Despacho Arnaut», constituiu de facto uma verdadeira antecipação da Lei que criou o SNS no ano seguinte.
Arnaut alertou reiteradamente para a desumanidade do neoliberalismo desregulado, que redundaria na destruição do Estado Social e na concomitante redução do SNS a um serviço residual para pobres e indigentes. A degradação dos serviços de saúde públicos, antes considerados de referência internacional pelos seus bons resultados, verifica-se hoje aos mais diversos níveis: na hemorragia dos recursos humanos, principalmente dos mais jovens, para o setor privado; na destruição das carreiras técnicas; na deterioração dos equipamentos e das condições logísticas; na exiguidade ou falência de meios de diagnóstico e tratamento disponíveis; e ainda na má gestão, quase sempre decorrente de escolhas de chefias norteadas por lógicas espúrias e tráfico de influências, incluindo partidárias.
Custa constatar a desfaçatez com que alguns usam e abusam do nome de António Arnaut para defenderem um SNS que nada tem a ver com aquele SNS pelo qual aquele lutou com elevadíssima nobreza cívica até ao fim da sua vida. Arnaut insurgiu-se sempre de forma desassombrada contra a enorme promiscuidade (sim, era esta a palavra que usava!) que existia entre o setor público e o setor privado no SNS, considerando que as Parcerias Público-Privadas, orientadas para o lucro, resultavam inutilmente caras para o Estado, que poderia prestar os mesmos serviços sem ter de pagar aos privados as margens de lucro de que beneficiam. Não será por acaso que os defensores das PPP insistem em pôr ilegitimamente no mesmo saco as IPSS, que servem de almofada ao SNS, principalmente no âmbito dos cuidados continuados. Subline-se que as IPSS não têm fins lucrativos, ao contrário das clínicas privadas que continuam a nascer como cogumelos à volta dos hospitais públicos.
Arnaut recusava-se a aceitar que a gestão privada é sempre melhor do que a pública ou que a por vezes manifesta má gestão do sistema público seja uma fatalidade. Arnaut nunca desmereceu o importante papel complementar do setor privado na prestação de cuidados de saúde. Considerava todavia que o setor privado não deveria parasitar o setor público. Curiosamente, muitos dos paladinos da bondade das PPP estão ligados ao sector privado ou nele mantêm indisfarçáveis interesses financeiros.
Qualquer Governo que se preze tem de gerir de forma criteriosa os impostos que cobra e de corrigir disfuncionalidades do sistema por meio de ações das quais resulte uma melhor saúde dos cidadãos. Reconhece-se universalmente que os «mercados da saúde» são economicamente atípicos. Devemos interrogar-nos sobre se a filosofia do neoliberalismo desenfreado que tem dominado desde finais dos anos 80 é de facto a melhor forma de incentivar um crescimento assente no respeito pela dignidade da vida humana lato sensu. Na verdade, as consequências da euforia neoliberal estão à vista de todos.
O filósofo Michael Sandel tem vindo a alertar para os limites morais dos mercados, insistindo que há coisas que o dinheiro jamais deveria poder comprar, mas que infelizmente vai comprando. A mais importante de todas é decerto o direito à vida e a cuidados de saúde que assegurem a dignidade das pessoas, todas por igual.
O Governo do PS tem agora uma oportunidade única para, sem abdicar de bom senso e de honrar compromissos, dignificar o legado de um seu militante genuinamente livre, que se bateu até ao fim da vida, desinteressadamente, por uma causa tão justa e fraterna.
Devo este tributo empenhado à amizade sincera que mantive com António Arnaut. E não, não sou militante do PS.
May be an image of 1 person
7 comments
Like

Comment
7 comments
View 5 previous comments
Most relevant

  • Fátima Silva

    Infelizmente há poucos meses necessitei do SNS, devido a um enfarte gravíssimo. Foram horas, dias de inferno. Nunca imaginei que fosse tão mau. Sinto terror só de pensar que poderei precisar novamente.
    • Like

    • Reply
    • 1 h

Reels and short videos