salazar

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SALAZAR
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SALAZAR E O APEGO AO PODER
Salazar (1889 − 1970) é, queiramos ou não, uma referência incontornável na História do país. Com ironia, Agostinho da Silva definiu-o, como «um mal necessário na época. Portugal partiu uma perna. Ele foi o gesso. Fez comichão, irritou, deformou. Quando a fratura ficou curada, o emplastro caiu e o País recomeçou a andar.»
Também o ensaísta Eduardo Lourenço, um dos intelectuais mais influentes na vida cultural portuguesa, afirmou a propósito: «Houve um processo de escamoteamento, de recalcamento da sua figura, o que nos impediu de fazer o luto por ele. Quando desapareceu ficámos aliviados mas vazios. (…) Não podemos, porém, viver como se ele não tivesse existido, ou como se fosse um acidente da História. Ele foi a História. Precisamos de ter lucidez para compreender isso, pois o passado condiciona sempre o presente, e este, o futuro.»
Distinguindo-se da imagem militarista, agressiva e viril dos regimes alemão, italiano e soviético, não podendo por isso comparar-se a Hitler, Mussolini, Stalin, ou à sua medida Franco, a verdade é que com Salazar, a realidade ultrapassou a ficção. Ele era um homem de hábitos rígidos, ritualizados, tal como o próprio corporativismo que se tornou num «regime austero, pudico, ritualista, cinzento, de chapéus e discursos, granitos e maçãs, vinho tinto e água benta, sempre pesado, sempre previsível.»
No seu gabinete de trabalho, onde se respirava a paz silenciosa de um claustro, sobre a secretária, encontravam-se sempre jarras com flores exóticas que lhe eram enviadas por uma admiradora da ilha da Madeira e, espalhadas pela sala, molduras com as imagens do Papa Pio XII, do rei Jorge VI e da Rainha-Mãe, de Isabel II e do príncipe Filipe, do general Franco e do Presidente Carmona, para além de uma pequena estatueta da Senhora de Fátima. No armário guardava os seus “Diários” de capa vermelha.
Contudo, era no sofá preto de pele, com uma manta pelos joelhos e uma escalfeta a aquecer-lhe os pés, que gostava de receber, refletir ou preparar os discursos para apresentar publicamente.
Tímido, avesso a contactos públicos, sentia pavor a falar para multidões pelo que nunca se dirigia à nação de improviso.
Apesar de adorar cinema não se permitia esse género de distrações, como rejeitaria outros prazeres que o desviassem da exclusividade do exercício da governação que encarava com sentido de abnegação, responsabilidade de serviço público e espírito de missão. Dizendo ser o poder um fardo do destino que exercia como instrumento providencial, agarrou-se porém às suas rédeas exercendo-o de forma centralizada, solitária, obstinada, quase absoluta.
O apego ao poder, a falta de confiança nos seus colaboradores ou um ego inflamado que o levou a querer assinar pelo seu próprio punho todas as medidas importantes, fizeram com que nunca tivesse preparado a sua sucessão e levaram-no a acumular com o cargo de Presidente do Conselho, o de ministro das Finanças, de ministro de Guerra ou de ministro dos Negócios Estrangeiros, numa acumulação sem precedentes.
Sedentário por natureza (uma pequena deficiência num pé obrigava-o a usar calçado corretor, o que não lhe permitia grandes caminhadas) as suas saídas diárias resumiam-se a pequenos passeios dados de preferência a meio da tarde, depois da sesta, nos jardins do Palácio de São Bento onde gostava de sentir a presença de crianças a tagarelar à distância. É nesse contexto que duas meninas das relações familiares da governanta Maria de Jesus, as “pupilas de Salazar”, de quem chegou a alimentar-se boatos de que seriam suas filhas, foram acolhidas no Palácio, onde serão criadas até à idade adulta.
Durante esse período possuía uma “família de aluguer”, amenizando perante os portugueses o perfil severo e frio de dirigente coimbrão, a sua postura tímida e algo reservada.
Vivia uma existência de quase reclusão em São Bento, ou durante o período estival, no forte de Santo António do Estoril. A jornalista francesa Christine Garnier, no seu livro Férias com Salazar, escreveu: «O próprio ar do oceano só o pode respirar do alto de uma muralha, como um prisioneiro.»
Perito num jogo de ausências e de presenças, alternava períodos de silêncio e de reserva com períodos de maior exposição pública, preservando assim a sua imagem e dando-lhe uma áurea de mistério. A maior parte dos portugueses que governava nunca o viu…
O francês Robert Bréchon, um dos mais conhecidos especialistas da obra de Fernando Pessoa, escreveu: «Salazar não é um chefe que se ame, mas um técnico do poder, que se admira e em quem se tem confiança. Aliás, não é admirado por aquilo que faz: o seu prestígio vem daquilo que a priori se acreditou que era capaz de fazer.»
Fernando Dacosta refere: «Íntimos diziam-no sensível, piedoso, íntegro, genial; adversários revelam-no cínico, despótico, pervertido, manhoso. Amigos garantiam-no misógino, casto e sublimado de sexualidades; inimigos asseveram-no secreto de aventuras, amancebado com a governanta Maria e pai de duas “afilhadas”.»
Possuía uma personalidade complexa, cheia de contradições em si mesma. Sensível e inteligente, frio e prudente, autoritário pretendendo dar uma imagem de político decidido e forte, atravessou, não raras vezes, períodos depressivos de grande indecisão e insegurança. O Cardeal Cerejeira referiu: «Nunca vi tantos contrastes na mesma pessoa. Aprecia a companhia das mulheres e a sua beleza e, no entanto, levou uma vida de frade. Nele, chocam-se a todo o instante o ceticismo e o entusiasmo, o orgulho e a modéstia, a desconfiança e a confiança, a bondade mais tocante e por vezes a dureza mais inesperada.»
O que é certo é que, inacreditavelmente, se aguentou quase meio século à frente dos destinos da nação, deixando-nos uma pesadíssima herança. Uma herança da qual, ainda hoje, não nos libertámos…
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