as mukandas do kota kandimba e a mulemba

retirado de diálogos lusófonos

 

Em memória do grande jornalista angolano huambino, Sebastião Coelho, passo parte de uma matéria que os amigos carinhosamente definem como as mukandas do kota kandimba
Quem nos conta a história é Sebastião Coelho, famoso jornalista huambino que nasceu em 1931 e morreu em 2002. Conta-a num texto datado de 2000, «A Mulemba da maldição».
 A mulemba da maldição
SEBASTIÃO COELHO,1931-2002
“…quando a mulemba secar, o Huambo vai desaparecer,
 destruido pelos seus próprios filhos. E as riquezas
 do solo não serão para ninguém…”
 MULEMBEIRA
 DA MALDIÇÃO DE ALBANO CANTO DOS SANTOS, dos anos 20
Nasci noutro bairro, mas, durante certo tempo da minha adolescência, vivi ao lado do campo de futebol do Sporting do Huambo. A minha rua estava coberta de jacarandás.
Quando floresciam, lançavam sobre o pavimento um manto de flores lilazes, que amanheciam orvalhadas e estalavam, fofas, debaixo dos pés. Gostava de ver os jacarandás vestidos de flor, quando perdiam todas as folhas e as pétalas chuviscavam sobre as nossas cabeças, abanadas pelo vento suave do entardecer. Depois, já murchas,
aninhavam-se ao longo dos muros em extensos cordões, deixando lugar para as flores novas. Eram milhões de flores que caiam em cada dia, as árvores envaidecidas a mostrar, cada uma delas, a sua pujança de vida.
Do outro lado da rua e além do aterro por onde passa o combóio, seguro de si e do seu caminho, estava o roseiral, acompanhando a via, encaixado entre esta e os cedros da sebe. Ultrapassado o muro verde, estendia-se, interminável, no sentido este-oeste, a avenida do Colete. Do colete, porque todas as casas estavam só de um lado. Incluindo a
Igreja Catedral, que estava em construção. As árvores da avenida eram acácias, que também brincavam de primavera, mas não perdiam as folhas, que pareciam mais verdes quando os ramos de flores brancas, amarelas, vermelhas ou alaranjadas, espreitavam pelo meio, a encher o ambiente de cores e olores.
O festival das rosas desafiantes de orgulho e de perfume, acompanhava a avenida para um lado e para o outro. A caminho da alta, logo depois da passagem de nível, havia um pequeno bosque e a seguir, os olhos embrenhavam-se no mundo dos cosmos, espectacular mancha de cores amontoadas de flores garridas que nem paleta de Matisse.
Sem perfume, mas de grande beleza. A avenida 5 de Outubro, a tal do colete, nascia na baixa, na continuação da estrada da Pauling e São João e terminava na alta, no cruzamento próximo das casas do Samacaca, onde se dividia em duas.
Quem tomasse pelo lado esquerdo, desfilando ao longo das casas do Samacaca ,desembocava nos anéis concentricos do jardim da alta. Continuando para a direita, ali perto estava o edificio do velho Teatro Peairo, que o tempo transformou na “Fábrica de Moagem”, onde tinha início a avenida Ferreira Viana, ladeada de casuarinas. Mas
abaixo desenrolava-se o projecto de avenida, sem nome e sem casas que terminava cruzando para o outro lado da linha do CFB, para transformar-se na estrada da Caála. Também era o caminho do Matadouro e o caminho do Cemitério.
Foi aqui, entre o Matadouro e o Cemitério, que eu nasci, numa pequena chitaca  dos arredores da cidade. Era longe para irmos ao “Ambo”, como diziamos, embora nesse tempo já se chamasse Nova Lisboa. Durante anos fiz esse percurso de muitos quilómetros, a pé ou em bicicleta. A alternativa era usar a berma da linha do combóio, que estava proibida para bicicletas. Ou, então, a pé, por um carreiro de gentio, atravessar a sanzala do Karilongue e descer e subir as empinadas encostas do rio, que se cruzava a vau. Ir e voltar do “Ambo” era uma viagem longa e cansadora de três a quatro horas, segundo a pressa e as pernas de cada um.
Nova Lisboa foi o nome com que a rebatizou o coronel Vicente Ferreira, ao decidir que a capital de Angola devia situar-se nesse ponto estratégico do Planalto Central. A lei ou portaria com a transferência de nome e da capital surgiu no Boletim Oficial no dia 21 de Setembro de 1927. Desde aí, esta data tornou-se o dia da cidade que só foi capital no papel, mas sempre foi cidade, porque nasceu cidade, a 12 de Agosto de 1912, por decisão do Alto Comissário da República Portuguesa, general Norton de Matos.
Acabava de chegar ao lugar o que seria o grande impulsor do progresso da região, o Caminho de Ferro de Benguela. Para celebrar o acontecimento, o general deslocou-se ao Huambo a fim de anunciar, pessoalmente, “in loco”, a fundação da nova cidade. Ele mesmo, de pé, sobre a tarimba montada frente ao barracão pomposamente designado
gare ferroviária, leu o auto fundacional, na presença dos primeiros habitantes europeus da cidade, dois homens e uma mulher. Logo a seguir e ali mesmo, o Alto Comissário lhes entregou, em mão, o rascunho da planta da nova urbe, traçado pelo seu próprio punho.
Dados geográficos, orográficos e hidrográficos de notavel precisão documentavam o projecto. A cidade seria implantada a sul da ferrovia, alcandorada sobre a linha divisória de águas da região. Não registava nenhum povoado nesse lugar e apenas dava conta da existência de uma incipiente mina de diamantes. As sanzalas importantes,pertencentes ao forte sobado do Huambo, estavam anotadas e dispersas pelos arredores.
Havia a embalada do soba grande da Kissala, a duas léguas a ocidente, a do sobeta Sanjepele, três léguas ao norte e a do Sumi, a umas cinco léguas a sul.
As sanzalas do Kalumanda, Karilongue, Kanhé, Kakeléua, Sakaála, Mukolokolo, Bomba e outras por aí, apareceram depois e foram bairros periféricos com entidade própria e nenhum aspecto de musseque. Os deterioros e a expansão incontenivel, são posteriores a esse tempo de que vos falo, quando o Paulino leiteiro ainda ia de casa em casa para entregar as bilhas de leite fresco. A lenha e o carvão chegavam na carroça do Sô Domingo, avisando: -“Toc, toc, toc.Cravão,Cravão-mé sióra ! “O rio da Granja era rio de água cristalina, que regava as hortas do Figueiredo e dava nome à única via alternativa entre a alta e a baixa. O grande “boulevard”, de duzentos metros de largura, era tão amplo que a vista curta das autoridades não suportou o desafio e o reduziu a um quarto.
Quem nos conta a história é Sebastião Coelho, famoso jornalista huambino que nasceu em 1931 e morreu em 2002. Conta-a num texto datado de 2000, «A Mulemba da maldição».
Um velho branco, Albano Canto dos Santos, provavelmente pioneiro da instalação dos portugueses nas terras do Wambo, casou-se com a filha do soba local. Esperava encontrar muitos diamantes e que um dia o seu filho se tornasse também soba. Plantou uma mulemba para o dia em que ele o fosse, pois à sua sombra reina também o soba. A mulemba cresceu, tornou-se frondosa e, portanto, tudo indicava que a sua esperança iria realizar-se. Os amigos, porém, combinados, puseram uns vidros no rio onde ele mandara escavar um buraco (junto à fonte) à procura dos diamantes. Convencido de que os tinha encontrado, foi confirmar tudo com o farmacêutico que, fazendo parte da tramóia, lhe disse que eram mesmo diamantes o que ele encontrara. O velho colono convocou uma grande festa, com refeição e tudo, para comemorar com os amigos. No final da refeição alguém lhe conta a verdade. Condoído, isolou-se, ficou doido, subia aos ramos da mulemba contemplando a mina e um dia enforcou-se.
Deixou uma carta e vale a pena transcrever esta parte do testemunho de Sebastião Coelho:
Na carta, delirante e profética, que escreveu e que teria sido encontrada junto ao tronco da árvore, pedia para ser enterrado ali, ao lado da mulemba, pois, se assim não acontecesse, a sua alma, inquieta, voltaria para vingar-se: … e quero o meu corpo a alimentar as raízes da árvore que eu plantei, quero que os meus sumos penetrem nesta terra e se juntem, lá embaixo, com as riquezas que não encontrei, mas que existem.
Com elas sonhei transformar este país rico e de gente pobre, num rico país para toda a gente. Sonhei ver o meu filho mulato Pedro Evango, feito soba do Huambo, sentado à sombra deste pau sagrado, criar uma nação próspera e feliz, mistura de várias raças.
Fui atraiçoado pela pior traição, a traição dos amigos e da confiança. Se me atraiçoarem de novo, saibam que esta mulemba vai secar e quando a mulemba secar, o Huambo vai desaparecer, destruído pelos seus próprios filhos. E as riquezas do solo não serão para ninguém… tudo será ruína e desolação!
Infelizmente, Sebastião Coelho não regressou ao Huambo,em Angola, para ver se a mulemba secou. Lembrou-se ele, na falta disso, da destruição que a cidade sofreu com a guerra civil, sobretudo no início de 1993, na famosa batalha dos 55 dias e depois na recuperação da cidade pelas forças governamentais. Mas os acontecimentos que nos narra se deram em um tempo recuado o suficiente para a lenda de Albano Canto dos Santos circular pela cidade. O próprio Sebastião Coelho a ouvira na sua meninice. Da meninice do Huambo, a estória podia espalhar-se para mais cidades, nada inédito em Angola.
Mulembeira em Angola é a “árvore da sabedoria”, o lugar tradicional da iniciação dos mais novos na sabedoria dos mais velhos
Árvore frondosa muito comum em Angola
Mulemba, Ficus Psicolopoga Welw. ex Warb, Ficus Sicomurus, Phyllantus stuhlmannii Pax, Ficus thoningii Bleim. Nos Dicionários de Kimbundu – Português, Mulêmba, pl. Milêmba, com o sinónimo de Incendeira. No Dicionário Cokwe – Português~, existem várias entradas para o radical Lemba – «uma árvore frondosa de que se extrai o visco para apanhar pássaros(Ficus Welwitschii); Lemba- oração, prece, súplica e ainda Lemba – antepassado, maior, avô, ancião. Com a grafia mulemba mas o sinónimo de Ensandeira ocorre em Cadornega, Tomo I, p. 818 – «É a árvore chamada em Luanda e seu interior ensandeira. Esta árvore é chamada no Congo nsanda; desta palavra fizeram os portugueses no Congo a palavra ensandeira, a qual palavra transitou para Luanda e ali se continuou a usar». Para as regiões do antigo reino do Ndongo « a permanência e a união dos grupos de parentesco e a sua ligação com os antepassados múndòngò passaram a ser asseguradas pela árvore mulèmbà, que passou a ser plantada no centro de cada nova aglomeração», Cf. Virgílio Coelho, Em Busca de Kábàsá…, p.143 . Carvalho, Ethnographia ,p. 93, atribuição do título Capenda- cá-Mulemba, deveu-se à grande abundância de árvores Mulemba (Ficus elástica) na região. Sesinado Marques, companheiro de viagem de Henrique de Carvalho, no seu Os Climas e as Produções de Malange à Lunda, também a considera e classifica, sublinhando a sua importância, a seu ver injustificada, como panaceia para múltiplas doenças, p. 45. Múlê : mb «simboliza a perpetuação do título político… para os Lunda e para os Lwena também, os dois termos para árvores Lannea – muyomb e mulemba – diferem na medida em que a primeira é predominantemente um símbolo ligado aos ancestrais, enquanto que a segunda se liga directamente à chefia», Hoover, Seduction, p. 575. «Árvore sagrada da maioria das etnias do ‘nordeste’. O lugar desta árvore na cultura tsokwé e Lunda é muito importante.
Todas ou quase todas aldeias têm uma mulemba que normalmente assinala o lugar da fundação. É debaixo dos seu ramos que frequentemente se discutem os grandes problemas, se faz justiça, se recebem os visitantes de honra, se dança, etc. Foi sob uma mulemba que Lweji recebeu pela primeira vez o seu futuro esposo, o grande caçador Tshibinda Ilunga», Mesquitela Lima, Fonctions, p. 305, 306. Areia, Les Symboles…,p. 395, afirma que no nordeste a mulemba é por excelência a árvore ligada ao culto dos antepassados. Citando um dos seus informadores, quando apontava a figurinha Kuku do cesto de adivinhação, diz: “Isto é o Lemba, uma pessoa de outro tempo, a mulemba é para lembrar o Kuku. Outro dos informadores apontando as árvores alinhadas ao lado de sua casa afirma ali residirem os antepassados e daí a existência de duas árvores, uma dos homens e uma das mulheres. Vancina em How Societies…, pp.239, 240, e nota 98, sublinha a importância da mulemba como árvore ancestral, sem relação, do ponto de vista das raízes linguísticas com lemba- lémbà- o mais velho de todos os residentes irmãos da mãe.

 

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