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QUAL A FIGURA HISTÓRICA MAIS APRECIADA NA RUSSIA?
O tempo de Gorbatchov e Ieltsin, do ruir do império soviético, foram anos loucos. Ouçamos a descrição reveladora de um observador/participante qualificado:
“Em Moscovo, em meados dos anos noventa, um produtor da tv poderia sair de casa uma tarde para comprar cigarros, encontrar um amigo demasiado excitado por alguma razão, e acordar dois dias mais tarde num chalé em Courchevel, meio nu, rodeado de beldades adormecidas, sem saber como lá se chegara. Ou ir a uma festa privada num clube de striptease, começar a falar com um estranho, encharcado em vodka, e no dia seguinte encontrar-se à frente de uma campanha de comunicação multi-milionária. O inesperado sempre foi uma das grandes qualidades da vida russa, mas nessa altura atingiu o seu auge. Imaginem todos aqueles homens e mulheres, jovens, cheios de vida, muitas vezes brilhantes, que pensavam estar condenados a uma vida de monotonia e que agora, inesperadamente, viam as portas do mundo abrir-se diante deles. Poderiam tornar-se no que quisessem, ganhar dinheiro, viajar pelo mundo, dormir com modelos. Tudo o que eles nem sequer sabiam que existia apenas alguns anos antes. Foi o suficiente para fazer perder o juízo. Na verdade, muitos deles perderam-no, literalmente. O nível de violência foi incrível.
Era como se os alunos do jardim de infância tivessem recebido um arsenal de espingardas semi-automáticas. As pessoas disparvam de todos os lados e pelas razões mais fúteis. Havia milícias privadas, pequenos exércitos escoltando homens insignificantes, e por vezes um era atirado ao ar. Uma bomba, um rebentamento de Kalashnikov. Tudo contribuiu para a bolha radioactiva de Moscovo. As aspirações acumuladas de todo um país, mergulhado durante décadas no torpor comunista senescente, convergiram aqui. E no centro não estava a cultura, como acreditavam os intelectuais convencidos de que tinham herdado o ceptro, mas na verdade não tinham herdado nada. No centro estava a televisão. O coração nevrálgico do novo mundo, que com o seu peso mágico dobrou o tempo e projectou o reflexo fosforescente do desejo em toda a parte.
Converter a minha experiência teatral numa carreira como produtor de televisão foi como passar de uma carruagem a vapor para um Lamborghini. Um dia estava sentado à volta de uma mesa de cozinha, a discutir Mayakovsky e a beber chá quente numa atmosfera permeada por cigarros sem filtro, e no dia seguinte estava a beber cappuccinos num espaço aberto concebido por arquitectos holandeses, fazendo apresentações em PowerPoint e aguardando ansiosamente as minhas futuras férias em Marraquexe. Nos estúdios da ORT, o primeiro e recentemente privatizado canal de televisão russo, não estávamos apenas a produzir programas, estávamos a experimentar as formas de vida que mais tarde seriam adoptadas por todos os novos russos. Passavamos o dia a dizer “Meu Deus!” e “Tanto faz…” e depois acabavamos a discutir as virtudes comparativas de Sassicaia e Chateau Margaux num bar de vinhos da moda. As raparigas pareciam o Sex and the City e os homens eram todos Johnny Depp. A proverbial habilidade mimética dos russos foi explorada por nós, posta em prática como qualquer coisa que espalhasse um zumbido, gerasse um bip. O efeito global, claro, era ridículo. E no entanto, fomos nós que, nesta fase, reconstruímos o imaginário colectivo do país. Todas as outras instituições tinham entrado em colapso, pelo que cabia à televisão mostrar o caminho. Pegámos nos escombros do antigo sistema, nos bairros residenciais suburbanos, nos pináculos dos arranha-céus de Estaline, e fizemos deles os cenários dos nossos reality shows. Depois seleccionámos os exemplos mais típicos da população russa, o chefe de família alcoólico, a babushka provinciana, a pequena prostituta ambiciosa, o estudante niilista, e mostrámos a cada um deles a melhor forma de entrar do novo mundo e fazer parte dele.
Primeira regra: não ser aborrecido. Tudo o resto era secundário. Os notáveis soviéticos tinham tentado sufocar o país sob um manto de tédio impenetrável. Agora podíamos permitir-nos tudo, menos a monotonia. É por isso que quase todos os dias surgiamos com uma nova ideia, um pouco mais absurda do que a anterior: um reality show sobre dois gangsters que lutam pelo controlo de uma pequena cidade de província? Porque não! Um documentário sobre escolas que ensinam raparigas jovens a deitar as mãos ao novo-rico? Nada mal! E o astrólogo que prevê os preços das acções? E o decorador especializado no estilo Marie-Antoinette? Eles também, no ar!
Estávamos a fazer televisão bárbara e vulgar como é a natureza da televisão.
Os americanos não tinham mais nada a ensinar-nos, na verdade éramos nós que estávamos a ultrapassar os limites do lixo. Mas de vez em quando a imemorável alma russa emergia das profundezas. A certa altura tivemos a ideia de um grande espectáculo patriótico. Quando pedimos ao nosso público para apontar os seus heróis, as personagens em que se baseia o orgulho da Mãe Rússia, esperávamos grandes mentes: Tolstoi, Pushkin, Andrei Rublev, ou, quem sabe, um cantor, um actor, tal como você teria feito, o qe nos chegou? O que é que os espectadores, a massa disforme de pessoas, que costumavam dobrar a coluna e baixar os olhos no antigamente, os sumissos, nos deram? Só os nomes dos ditadores. Os seus heróis, os fundadores da pátria, coincidiram com uma lista de autocratas sanguinários: Ivan o Terrível, Pedro o Grande, Lênin, Estaline. Fomos forçados a falsificar os resultados para fazer Alexander Nevsky ganhar, pelo menos um guerreiro, não um exterminador. Mas aquele que obteve mais votos foi Estaline. Estaline, acreditam*? Foi então que percebi que a Rússia nunca se tornaria um país como os Estados Unidos.
* Num inquérito realizado muito mais tarde, no auge do poder de Putin, a resposta foi igual, Estaline. E só a seguir Putin.
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- Ana-Alice S. PereiraEm Portugal, há uns anos, num concurso televisivo para eleger o “Maior Português de Sempre” ganhou Salazar.
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