Rui Suzano · O CAVALO DE TROIA

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O CAVALO DE TROIA
Deixo aqui apenas algumas das preciosidades do programa do Chega (https://partidochega.pt/programa-politico-2019/), porque o espaço é curto, e um apelo à reflexão para tentar perceber como é possível que o próximo governo da RAA esteja eventualmente refém deste tipo gente e de ideologias e se a ambição do poder, do tacho já prometido ou do salário já garantido, despiu muita da classe política daquilo que afinal este mesmo partido de ultra-direita tão elogia: a dignidade.
O Chega preconiza a “demolição” (sic) da actual III República, pois considera que desde a esquerda à direita democrata cristã imperam resquícios do marxismo e que a solidariedade e a fraternidade não podem ser princípios consagrados mas sim manifestações voluntárias individuais. Portanto, voltamos à exortação caridade medieval para alcançar a salvação.
Ao Estado compete apenas assegurar a dignidade do cidadão. Ora, segundo eles mesmos, como os homens nunca podem nascer iguais à partida, até por uma questão genética (haverá os triunfadores de raça apurada?), o Estado não pode nem deve contribuir para o igualitarismo e, em nome da suprema liberdade individual, cada qual valer-se-á por si, não competindo àquele sequer a prestação de serviços sanitários ou educacionais universais e gratuitos. Ou seja, o fim do SNS e da escola pública. Aliás, as propinas devem aplicar-se de forma diferenciada e certos cursos considerados secundários, sabe-se lá por quem, como a sociologia (sic), deverão ser pagos por inteiro. Está escrito preto no branco.
Mais ainda, sendo o imposto actual vigente progressivo e uma forma de equalizar a sociedade e do Estado redistribuir indevidamente a riqueza, o Chega, que é contra, propõe um imposto único, independentemente do rendimento auferido. Cito ainda, se “o cidadão tem direito à habitação, ou à saúde, ou à educação, tem igualmente o dever de não permitir que sejam outros cidadãos – excepto em casos limite – a providenciar-lhe essa habitação, essa saúde ou essa educação. Os beneficiários dessa solidariedade estão a sugar recursos, onde, por exemplo, a habitação social é um caso, gritante e exemplar, desse escândalo”.
Entende, pois, que as funções sociais do Estado devem ser residuais e não lhe compete “tirar aos ricos para dar aos pobres”, mas criar as condições para que todos possam ser mais ricos, como se nos países ditos neoliberais não imperassem as mais brutais desigualdades sociais, contrariamente aos dos ditos estados sociais norte europeus, porque obviamente se as condições à partida são desiguais desde logo, muito menos, todos poderão ser bem-sucedidos na vida. Na RAA quer acabar de imediato com 50% do RSI. Como o fará? Sai quem tiver o palito mais pequeno?
Ora aqui está algo que eu deveria aplaudir, tendo em conta o meu estatuto profissional e salarial, se não fossem as náuseas que o discurso me causa. Anúncio do fim do estado social. À boa maneira de Nietzsche, morram os fracos e os falhados.
Assim sendo, o Estado tem apenas um mero papel arbitrário mas como cada um é totalmente livre, também usará essa liberdade para contratar laboralmente e quem aceita o contrato é livre de o recusar, o que nos transporta para o início da revolução industrial onde esse tipo de liberdade gerou injustiça social, exploração, grandes revoltas e o próprio marxismo, manifestações que um governo Chega se encarregará seguramente de reprimir. E é este o futuro que a maioria dos pobres de espírito, que aplaudem Ventura e os seus dois gurus, querem para este país? Saberão o que estão a escolher?
É também patente no seu conteúdo programático, como não podia deixar de ser, a apologia à célebre trilogia fascista da autoridade, pois governar não se compadece com o que chama “pântano do consenso”, de Deus, já que a educação deve ter a “matriz judaico-cristã” e não laica, e da família, que considera a “instância primária do poder”.
Como bons populistas querem reduzir os deputados e acabar com os seus privilégios, coisa que, para dar o exemplo, o seu deputado não recusou.
O Chega é xenófobo, abomina migrantes, islâmicos, a nacionalidade adquirida. Preconiza a pena de morte, como já o disse mas não o escreveu, a prisão perpétua, a radical castração de pedófilos, bem como não apoia as questões do género, o aborto, a eutanásia e até quer concretamente a exclusão do ensino do Islão, pois, no seu entender, islamita é sempre sinónimo de radical.
Abre sub-repticiamente as portas à aquisição futura de armas, mantendo para já a conservação de armas herdadas, independentemente de colocar algumas restrições, à boa maneira americana, ou não fosse Trump um dos seus ídolos.
Propõe o ensino da história de Portugal sem revisionismos, ou seja, faz a apologia ao estoicismo e ao heroísmo salazarista, por mais falacioso e enviesado que seja. Como se não bastasse o Chega é declaradamente contra as autonomias regionais e os partidos do regime, mas com os quais fará tudo para se infiltrar no mesmo.
E para terminar, é contra a abolição das tradições, desde logo as touradas, rejeita expressamente o multiculturalismo apelando mesmo à sua inconstitucionalidade. Promove a caça, reduzindo as licenças para esta prática, porque é totalmente anti-animalista. Recusa, imagine-se, “o ambientalismo malthusiano e catastrofista, com a sua visão do homem como predador e destruidor da Natureza”.
Muito mais haveria para expor mas desde já pergunto-me se será com esta ideologia que partidos ditos sociais-democráticas, democratas-cristãos, monárquicos constitucionalistas, liberais democráticos, ambientalistas e animalistas ou, um dia, mesmo partidos ditos de esquerda (já vi de tudo na vida), estarão indecorosamente a implorar por viabilizações de programas, coligações governativas ou simplesmente estabelecimento de acordos parlamentares mais ou menos encapotados, consoante a última réstia de vergonha? É que ao contrário do que diz um antigo governante regional não há extremistas menos radicais pelas ilhas. É uma falácia. Com Hitler, ou se era nazi ou não se era nazi. Não há meio-termo.
Bom…ver para crer e, no fim, cada um tirará a sua ilação. Por muitas justificações e boas intenções que se apregoem, em política o que parece é… e à mulher de César não basta ser honesta, deve parecê-lo…
Dêem-lhes o palco que pretendem e tragam-nos para dentro do sistema que já perceberão como os Gregos tomaram Tróia. Até o Chega elogia o direito à diferença, mas está visto que, se assim vier a ser, esta classe de políticos que nos governa, nos Açores e em Lisboa, vendem a alma ao diabo, não têm sentido de Estado e lá no fundo, ante a opinião geral, são todos iguais. Percebem o porquê da sistemática abstenção ou da apetência para o voto de protesto em radicais porque afinal todos lhes dão importância?
Como disse Eduardo Prado Coelho precisa-se de nova matéria-prima para construir este país, mas, possivelmente, é preciso antes de tudo eliminar alguma coisa e reiniciar todo o sistema…..
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