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O Arnel
Há uma história que já fez gastar muita tinta de que eu também quero falar. É a história do encalhe do navio “Arnel”.
Eu já tinha dez anos feitos quando esse acidente ocorreu. Foi na madrugada do dia 19 de Setembro de 1958. O barco largara do porto de Vila do Porto e não se percebe como, quando chegou à ponta da ilha, saiu da rota virando cerca de noventa graus a estibordo, até encalhar junto à costa, muito próximo dos Anjos, na que veio a ficar conhecida como baixa do Arnel. Suponho que o piloto terá pegado no sono! Pelo menos comentaram isso na época…
O “Arnel”, um nome de origem alemã que significa “criativo”, “generoso”, “moderno” ou “sério”, era um barco de passageiros muito usado pelos açorianos nas suas deslocações às outras ilhas, antes de se terem tornado banais as viagens da Sata. Eu já tinha feito pelo menos uma viagem nesse navio e, mais tarde, no “Cedros”, que era o seu irmão gémeo. Fora construído em 1955 nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e introduzido com a ideia de melhorar o deficiente serviço de cabotagem nos portos açorianos, que vinha sendo efetuado por iates de duas velas, os “palhabotes”, que alcançavam velocidades razoáveis quando havia vento de feição. A construção do “Arnel” foi orçada em catorze mil contos. Tinha mais de 57 metros de comprimento, uma largura de 10,06 metros e um calado de 3,66 m. Acomodava 18 passageiros em classe turística e 126 em 3ª classe. Estava ao serviço há pouco mais de três anos.
Era muito comum ir-se a S. Miguel, a terra onde eu nasci e que era ainda o berço de toda a minha família, onde viviam os meus primos, tios e avós. Mas, anos depois, já nem sei em que ano, e no seguimento de uma lei que protegia os passageiros de viajar em navios que transportassem cargas perigosas, como era o caso das botijas de gás e até da própria gasolina, houve uma grande mudança. A gasolina era enviada em bidões de duzentos litros de Santa Maria para S. Miguel, pois não havia consumo que justificasse ir lá um petroleiro, contrariamente ao que acontecia nesta ilha que tinha de abastecer todos os aviões de longo curso que faziam escala no aeroporto. E as botijas de gás vinham de S. Miguel nos mesmos navios… Assim, íamos ao J. H. Ornelas comprar uma passagem e eles davam-nos uma para apanhar a SATA, pelo preço da viagem marítima.
Aquele dia foi inesquecível. Parece que toda a gente perdeu a calma e se dirigiu para a zona dos emissores, onde habitualmente íamos tomar banho. Não era bem nesse sítio: era um pouco mais à direita e chegava-se lá depois de saltar uns quantos muros de pedra solta. Nem era necessário saber o caminho: era só seguir as pessoas que para lá se dirigiam em peregrinação e a pé…
Na minha memória ficou gravado um facto insólito: o meu amigo João de Lima, que era empregado do Hotel Terra Nostra, tinha-se salvo a nado e dirigira-se para o hotel de onde dera o alerta.
Estive hoje a falar com o senhor Freitas, que trabalhou na J. H. Ornelas, uma das empresas dos Bensaúdes a quem também pertencia a Empresa Insulana de Navegação, proprietária do “Arnel”. Ele lembra-se bem desse dia e esteve lá também a ajudar no resgate dos passageiros, com um cabo vaivém que foi montado. Havia uma corda enorme que as pessoas, em terra, iam puxando…
Quase de imediato, chegou uma ajuda da Base Aérea da Praia da Vitória: um helicóptero da Força Aérea dos Estados Unidos. O helicóptero da Força Aérea Portuguesa só chegou por volta das 16 horas, após o que o piloto foi de imediato tomar café ao bar do aeroporto.
Com uma máquina de rastos, cedida por Salvatore Ardaiolo, da Job Order 101, abriram um caminho até à costa, derrubando os muros que atrapalhavam as manobras. Atrás dessa máquina seguia uma procissão de veículos com o mesmo destino. Numa operação impecável, o helicóptero americano retirou de bordo todos os passageiros. Com participação dos americanos e do pessoal técnico do aeroporto, montaram estruturas em terra com tudo o que era necessário para apoio aos resgatados, desde um restaurante de campanha até ao posto de primeiros socorros. Estava toda a gente alarmada e nem se percebeu a pressa de retirar os passageiros de bordo, até porque o mar não estava agitado e o navio não corria o perigo de naufragar: estava bem encalhado e o casco aguentou-se inamovível por vários anos, depois de o mar o arrastar uns metros e o encalhar em definitivo. (Calcula-se que, se no momento houvesse o apoio de um rebocador, tudo poderia ter sido diferente.) Porém, o encalhe aconteceu durante a noite e alguém a bordo terá gritado “salve-se quem puder!”, o que contribuiu para toda a agitação que se instalou.
Os falecimentos ocorridos deveram-se à escuridão absoluta que se verificou quando o motor e o gerador deixaram de funcionar, em resultado do rombo que o navio sofreu e que deu origem à entrada de água na casa das máquinas. Eram três horas da manhã. Sob consentimento forçado do comandante do navio, Capitão José Rodrigues Bernardes, velho e experimentado marinheiro açoriano, lançaram um salva-vidas ao mar. Mas as amarras rebentaram de um lado e os passageiros foram lançados à água. Dos dezassete passageiros escaparam três que nadaram até terra. As vítimas foram: Angelina Augusta Cabral, António Medeiros Brilhante, Padre Artur Brandão, Carlos Manuel Costa Dutra, Joaquim Soares Melo, José Joaquim (tripulante), José Joaquim Pacheco, José Manuel Amaral Soares, José de Sousa, Manuel Sousa Borges, Maria Cisaltina Costa Galego, Maria Conceição Sousa Bairos, Maria da Encarnação Chaves (mãe do então seminarista Arsénio Chaves Puim), Maria da Encarnação Machado e Vidália Maria Paiva Cabral Melo.
James Ardaiolo, cujo pai chefiava a operação Job Order 101, era uma criança em 1958. E nunca se esqueceu daquele dia e de ter visto os corpos alinhados na praia. Teve pesadelos por muito tempo.
Maria do Carmo da Ponte ia fazer uma operação em Ponta Delgada e a mãe, Maria da Ponte, ia com ela. Eram da Lapa de Cima, de Santo Espírito. A irmã, Maria de Chaves, passou um grande sufoco sem saber o destino delas… Veio numa lancha e a mãe num cabo vaivém.
A mãe de Eunice Pinheiro Sousa, então com quatro anos de idade, também seguia nessa viagem com a avó Natália. Um tripulante tentou colocá-la no salva-vidas que viria a sofrer o acidente, mas Natália não a deixou embarcar sozinha. Com isso salvou-lhe a vida. Acabaram por ser socorridas pelos helicópteros americanos.
Natália Silva Paiva recorda-se, e tem uma fotografia, do salvamento da sua tia Alice por um helicóptero da U.S. Air Force. Nem se esquece do seu sorriso à saída do helicóptero que a resgatou do “Arnel”.
Maria Tomás também lá esteve desde as seis horas da manhã. Assistiu a muito para uma criança de sete anos. E lembra-se dos gritos de bordo, dos helicópteros e de ver os corpos a boiarem no mar… Assim como Maria Helena, com seis anos de idade, que foi lá em companhia da mãe e que assistiu a tudo, inclusive ao espetáculo dos corpos estendidos, Cidalisa Andrade, Emília Carvalho, Encarnação Carreiro… e quase toda a população da ilha.
Os descendentes dos acidentados nesse encalhe ainda recordam os seus mortos. É o caso, entre muitos outros, de Conceição Bairos, a quem faleceram dois tios paternos, na balsa que se virou, e de José de Melo, a quem faleceu o avô paterno.
Amâncio Couto relembra aquele que considera o herói desse naufrágio: João de Lima, que vive atualmente em Toronto.
Entretanto, a notícia correu veloz e vieram. de Ponta Delgada, em auxílio, o salva-vidas “Almirante Castilho”, as traineiras “Raquel” e “Ilhéu”, o rebocador “Gazela”, os iates “Ribeira Quente”, “Santo António” e “Senhora da Guia”, além de outros.
O “Arnel”, que veio a ser substituído pelo “Ponta Delgada”, acabou por ser vendido ao Cabo Silva, o construtor do Bairro da Lata, (pai do José Henrique Silva, falecido recentemente) que ainda o tentou resgatar. Porém, foi um grande empate de capital de que nunca recuperou, já que o resgate se tornou impraticável. Limitou-se a desmontar e vender algum do mobiliário e artigos elétricos que por lá existiam. Há ainda, na sala de leitura do Clube Asas do Atlântico, uma escrivaninha que teve essa origem. E todos os lustros e candeeiros que existiam no Asas, antes da reconstrução, tiveram a mesma origem. Assim como as portas vaivém que ligavam o átrio de entrada à sala de jogos e ao salão de festas.
(Fotografias extraídas do “Memórias e Lembranças da Ilha de Santa Maria”. Um agradecimento especial ao senhor Fernando Ramos, atualmente com 95 anos de idade. Era ele o controlador de serviço no momento e foi ele que me corrigiu a informação sobre o apoio aéreo à operação.)





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You, Maria Antónia Fraga, Luis Antonio Ricardo Candeias and 106 others
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Que dia tão triste. O meu pai trabalhava então no Hotel Terra Nostra (mas sempre no terminal, vigiando os caterings e o serviço do bar) e soube de tudo. Não me permitiu que fosse ver nada, e eu bem queria ver tudo. Uns dois anos depois é que fomos em p…
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View 1 more reply- ActiveMas às escuras, e com o barulho do mar, quem é que conseguia imaginar o que é que se passava? O caso do Titanic ainda estava muito presente na memória das pessoas…
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