revolta em Goa (1895)

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GOA – A REVOLTA DOS MARATAS
A Sangrenta Revolta de Setembro de 1895 em Goa
Ivo da Rocha
23 Outubro 2021 DN
Opinião
Esta revolta em Goa dos soldados nativos e dos Ranes, em setembro de 1895, iniciou-se por obra e graça do então administrador do concelho das Ilhas, capitão Gomes da Costa (mais tarde, general e iniciador em Braga da Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926) que, primeiro, abusando de poderes, pôs-se a perseguir e a mal tratar um clérigo pio, devoto e santo, o bispo Francisco Xavier Alvares e, logo a seguir, foi o iniciador e instrumento da rebelião dos soldados nativos maratas e, finalmente, foi a causa da sangrenta revolta dos Ranes de Satari.
​Tudo, para ter notoriedade, supremacia e fama balofa. Julgava poder acirrar ânimos e fulminar fogos que, com a suposta superioridade da sua franja de reinóis, descendentes e mestiços, iria apagar e assim colher louros e tributos, o que não sucedeu. Prestou um mau serviço para a governação portuguesa, como está documentado. O advogado Sertório Coelho escreveu a este propósito um opúsculo sob a designação “Uma página negra para os anais da história colonial portuguesa” tendo surgido com a mesma nota crítica pelo menos mais 12 livros e opúsculos dos quais destacamos Goa sob a Dominação Portuguesa, por António Anastásio Bruto da Costa, 1897, Ao Leitor, em Defesa do Visconde, O Europeísmo e a Revolta, por André Paulo, 1896, A Revolta dos Maratas em 1895, pelo general visconde de Vila Nova de Ourém, (que era o governador geral ao tempo da revolta), 1900, e Apontamentos para a História da Revolta em Goa dos Soldados, Ranes e Satarienses, pelo visconde de Bardez, 1896, livros e relatos da imprensa da época que seguimos de perto.
​ Desta sua ação, o capitão Gomes da Costa, não só infligiu maus-tratos a um santo sacerdote, como causou, colateralmente ruína e sangue em todo o norte de Goa e, quando se viu impotente para debelar a crise, lançou culpas ao visconde de Bardez um dos vultos mais notáveis da época, proprietário de extensas terras, advogado notabilíssimo, director do jornal Pátria, chefe do Partido Regenerador de Goa e conselheiro e consultor do governo, a quem pôs em descrédito e desgraça.
​Este tumultuoso ambiente, racista, convulsivo, sanguinário e destruidor manteve-se, com o governador Rafael de Andrade e Gomes da Costa, coligados. Só se apaziguou quando estes dois foram telegraficamente chamados à metrópole e para o debelar veio de Lisboa, em 13 de novembro de 1896, uma expedição sob o comando do Infante D. Afonso Henriques, duque do Porto, irmão do rei que, com a sua sensata política de diálogo com os revoltosos, conseguiu amainar as águas tormentosas e pacificar finalmente Goa, paz que foi mantida com a posse do novo governador-geral, general Joaquim José Machado (1897-1900), que proclamou amnistia geral para todos os intervenientes, especialmente para os militares e ranes revoltosos.
​Expliquemos melhor o desencadear de cada uma destas virulentas e sanguinárias etapas de Setembro de 1895:
1. O bispo Francisco Xavier Alvares
​Já em meados de 1895, a imprensa de Goa verberava contra os desmandos, prepotências e corrupção da governação colonial. Especialmente o semanário O Brado Indiano do bispo Francisco Xavier Alvares começou a denunciar altos funcionários europeus, estando entre estes o Administrador do Concelho, o então capitão Gomes da Costa. Também outra imprensa de Goa fazia idênticas denúncias mas, como escreve Gabriel Saldanha na História de Goa, vol I, 1925, p. 296 “os artigos do Brado em linguagem veemente e de um modo bastante desabrido produziram irritação”.
​A pretexto de que os artigos no Brado Indiano visavam uma sedição nativista, o capitão. Gomes da Costa prendeu o Bispo quando vinha para a cidade, despojou-lhe das vestes episcopais – mitra, cruz e o mais – e levou-o em tronco nu para um carcere imundo onde o deteve preso numa cela inóspita.
​A este propósito o jornal O Ultramar de 31 de Agosto de 1895, sob o título “Um Sudário” escrevia:
“O padre António Francisco Xavier Alvares é um sacerdote de temperamento exaltado, obstinado nas suas resoluções e por isso insusceptível de conselho. Desinteressado e altruísta em extremo; capaz de ceder ao pobre o único pão que possua fiando elle à fome, promto a acudir às misérias humanas, como mostrou quando em 1869 o concelho das Ilhas foi flagellado com a epidemia de cholera-morbus, occasiao em que, sem remuneração alguma, apezar de ser pobre como ainda hoje é, com o risco da própria vida, correu espontaneo de casa em casa a tomar conta dedicada do tratamento material e espiritual dos atacados. Haverá pouco mais de 7 anos que, por motivos que não vem agora ao caso, passou do rito catholico ao syriaco, e nele foi sagrado bispo com o nome de Mar Julius. Não é, portanto, apostata, mas tão somente scismatico; pois a apostasia é totalis defectio a fide chistiana. E o padre é cristão, que da jurisdição do arcebispo de Goa, patriarcha das Indias, passou para a do patriarcha de Antiochia. Além disto, pelo decreto de 18 de novembro de 1869 é, nas províncias ultramarinas, permitido aos habitantes não catholicos, inda que não sejam hindus gentios, gozar de seus usus e ritos privativos, no que se não oppuzer à moral ou á ordem publica. Todavia, acusado logo no começo perante a justiça, o juiz de direito da comarca das Ilhas, o sr. dr. Vieira Lisboa, mandou-o em paz julgando que não era crime a sua mudança de rito mesmo com as vestes e insígnias da sua posição. É, por tudo isto que, de há annos, o sr bispo Mar Julius andou aqui com as suas vestes e insígnias episcopais. Em dezembro do ano findo veiu à luz nas Fontainhas, bairro de Pangim, um periodico denominado Brado Indiano, que ainda hoje se publica sendo o sr. Mar Julius seu redactor em chefe. Esse periodico, escripto em linguagem rude e em portuguez pouco correcto, verberava em estylo hyperbolico o que entendia serem abusos da função pública, e no meio daquele tohu-bohu saíamalgumas verdades duras, que deviam forçosamente amargar aquelles a quem tocavam.
​Não tinha partido, esgrimia a torto e direito, não poupava ninguem, pugnava principalmente pelo contribuinte que julgava explorado pelo fisco; e o certo é que o conselho de provincia por seu accordam julgou ha poucos dias, uma causa do contribuinte Vicente Sebastião Afonso, a quem o Brado dizia exigirem pela segunda vez, uma contribuição valiosa já paga, e que o administrador do concelho das Ilhas (Gomes da Costa) arbitrariamente lhe arrematara os bens, e lhe impedia o recurso à justiça, accordam que, dando razão ao reclamante, annullou a arrematação e mandou que o administrador do concelho remettese o arrematador no campo dajustiça.
​O ideal do Brado era proteger os seus patricios opprimidos, segundo o seu entender, e moralisar a função publica. O seu redactor principal, o exaltado padre, sentia arder-lhe no peito o fogo sagrado da sua ideia, julgava-se o instrumento poderoso della, não calculava nem temia os escolhos em que poderia vir a bater. Era como que um fanatico defensor de seus patricios.
​No seu furor de endireitar o mundo pondo a nu e a cru os seus defeitos, publicou ultimamente um artigo intitulado Enigma, que alguem lhe mandara de Lisboa, no qual se descrevia um funccionario, que em Portugal havia percorrido varias estações de serviço, tendo sido successivamente dellas expulso por desvios de dinheiro a seu cargo, até chegar a ser expedido para aqui empurrado pelas protecções, por não o poderem aturar ali. Mas não designava directamente nem nomeava ninguem.
​O sr. Manuel de Oliveira Gomes da Costa, capitão do exercito de Portugal, servindo de administrador do concelho das Ilhas, julgando-se ele o visado, intimou, nos termos da lei, o editor do Brado a declarar terminantemente, se era a si que se referia o tal enigma, pois era elle o unico que se achara nos sitios e cargos designados na charada”
​​Dessatisfeito com a resposta, o capitão Gomes da Costa prendeu o ​padre ​Alvares e acusou-o de sedicioso. O processo crime por sedição foi ​arquivado ​pelo juiz, Dr. Diogo Gomes de Menezes, que fez constar da ​sentença que a rebelião indiciada pelas denúncias existia sim, mas era ​contra ​a gramática e o bom senso…”
​Interposto recurso pelo Gomes da Costa para a Relação de Goa, noticiava O Ultramar de 24-09-1895:
“Aggravo contra o sr. padre Alvares – Na nota que recebemos, dos processos decididos na terça feira última, 24, encontra-se a seguinte decisão: Aggravo crime… Não tomou conhecimento do aggravo, por não ter subido devida e suficientemente instruído, faltando por isso ao tribunal os elementos necessários para se proceder com inteira verdade e justiça”
Com isto foi-se a rebelião. Pêsames aos seus fabricantes.”
​Os ulteriores anos passou-os o Bispo Xavier Alvares completamente devotado aos pobres e doentes. A sua habitação em Ribandar transformou-se num lar de acolhimento de leprosos, tuberculosos, pobres e marginais, sem distinção de casta ou credo. Faleceu em 23-09-1923.
​Em dezembro de 2015 este bispo goês, bispo Alvares, com o título de “Mar Julius”, que fundou a Comunidade Ortodoxa de Brahmavar, Mangalore, no estado indiano de Karnataka, que viveu de modo espartano, frugal e sempre pelo próximo, tão perseguido pelo capitão Gomes da Costa, foi sagrado “Santo” por Sua Santidade Catholicos Baselios Marthoma Paulose II.
2. A rebelião dos soldados nativos marathas
​Por coincidência, enquanto o capitão Gomes da Costa, com a ajuda de um punhado de europeus, intimidava o bispo Alvares e os nativos com prisões , ameaças e desmandos, surge da metrópole, nesse Agosto de 1895, uma ordem insensata mandando que os soldados nativos da casta dos “marathas” incorporados na guarnição da Índia fossem transferidos para Moçambique “sem se declarar quais eram as vantagens e as condições do embarque”.
​Notou-se logo grande descontentamento nas praças, seja porque se iam expor ao combate, seja pela repugnância dos gentios a atravessarem o mar.
​Gomes da Costa e o seu grupo terão visto neste descontentamento dos soldados a sua oportunidade para criar um “acontecimento” e desviar a atenção do público para as acusações de que era alvo e, dominando a situação, colher louros e aplausos como o salvador da Pátria.
​​Para o efeito, Gomes da Costa terá aconselhado estes soldados a revoltarem, abandonando o quartel, pois só então ele diligenciaria para uma amnistia, como já tinha acontecido no passado. Os soldados terão acreditado neste conselho salvífico do capitão e agido em conformidade.
​Assim, na noite de 13 a 14 de setembro de 1895, rebentou no quartel do corpo de Polícia uma revolta de 900 soldados indígenas que marcharam com armamento e cartuchame para Satari, norte de Goa, sem molestar pessoa alguma e sem fazer qualquer saque ou violência. Os revoltosos apenas solicitavam amnistia ao crime de deserção e dispensa do serviço militar para evitarem terde ir para Moçambique.
Escreve o visconde de Bardez , no seu livro citado, a fls. 50:
“Provam-no a circunstância de o sr. Gomes da Costa confessar que tivera conhecimento do projecto da deserção quatro dias antes dela se efectuar, sem contudo prevenir o respectivo comandante, e de estar a vigiar, postado a um canto da rua, a consumação do facto, e de se meter depois entre os fugitivos, e acompanha-los até a distância de um quilómetro, detendo-os na ponte de Ribandar por tempo de quase meia hora, facto que se traduziu depois como um acto de bravura temerária, mas que não deixa de ser profundamente sugestivo.”.
No livro Ao Leitor, a fls. 27 lê-se:
“Enfim este desgraçado (Gomes da Costa) a que escápula se socorre para explicar a sua presença ao pé do quartel a testa da sua polícia civil, quasi ao mesmo tempo que os marathas se revoltavam e em tumulto saíam do quartel, evidenciando desta forma que não ignorava que alguma coisa de extraordinário devia ocorrer naquele dia. Diz o ditado: é mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo. E note-se que o SECULO de Lisboa prenunciava com grande antecipação a revolta e que o Gomes da Costa era assignante daquela folha e passava por ser em Goa seu correspondente.”
​Aguardaram os revoltosos pacientemente no Forte de Nanuz que o seu pedido de amnistia e dispensa militar fosse atendido, como lhes fora prometido, mas seja por deliberada distorção de informações enviadas de Goa, ou por outra razão menos acertada, foi-lhes telegraficamente denegado o pedido de amnistia e retirado o subsídio de alimentação.
​Foi imediatamente proclamada a lei marcial, suspensas as garantias constitucionais, com proibição da imprensa e publicações e confiada a direcção superior da defesa ao capitão Gomes da Costa.
​No uso destes poderes excecionais, Gomes da Costa terá travado duras “batalhas” com os revoltosos. Das suas várias peripécias demonstrativas da sua valentia, consta a sua ida, numa lancha a vapor, armada de algumas peças de artilharia, a Amonã, onde dizia ter travado combate com os desertores sem, todavia, se ter verificado o mais leve ferimento de qualquer dos lados! Dizia depois ter travado combate em Gutnem em que ficou gravemente ferido o alferes europeu Possolo e sofreu ligeiro ferimento no pé o Comandante Gomes da Costa, havendo grande mortandade no inimigo “sendo a nossa tropa obrigada a retroceder por se terem inutilizado as duas peças de campanha com que era sustentado o fogo contra a força comparativamente mais numerosa dos desertores”.
​Este relato do capitão Gomes da Costa provou-se ser mentira, pois à chegada da expedição comandada pelo Infante D. Afonso Henriques, Duque do Porto, irmão do rei, os revoltosos abandonaram o Forte de Nanuz e ali foram encontradas em muito bom estado e sem dano, ambas as referidas peças de artilharia! Já na altura, o Bombay Gazette dizia ter sido esse combate do capitão Gomes da Costa uma vergonhosa derrota da força do Capitão e que a ferida do capitão em que se baseava para justificar a dureza do encontro, era o resultado de um tropeço na ocasião da fuga precipitada.
​Dias depois o governador-geral solicitou ao conde de Mahem, ao. visconde de Bardez e ao dr. Fernando da Cunha que fossem ter com os revoltosos numa missão conciliadora e os convencessem a entregar as armas e a dispersarem-se, prometendo-se-lhes recomenda-los à clemencia do soberano e solicitar a baixa ou a amnistia.
​Neste encontro com os revoltosos, estes esclareceram que a sua fuga fora um ato de necessidade pois, quandoreunidos no quartel de Nova Goa disseram que não podiam ir para África, transpondo mares, por os seus costumes a tanto os proibirem, tinham sido espancados a ponto de alguns ficarem desdentados; que se lhes fizera a ameaça de irem embarcados à força ; que tendo eles dito que queriam protestar ao governo, tinham sido encarcerados; e que por isso, na extrema necessidade, haviam recorrido à fuga” como melhor remédio, como foram aconselhados. (in “História da Revolta” p´ag. 18). A tentativa de conciliação fracassou.
3. Os ranes revoltados e coligados e o visconde de Bardez
​Esta conflagração dos soldados nativos foi aproveitada pelos ranes de Satari. Os “ranes”, casta guerreira de Satary, no norte de Goa, e clientes do visconde de Bardez, aguardavam entre outras pendências, a decisão do governo sobre uma questão recorrente: a dos aforamentos. As terras desbravadas pelos ranes e roitos, que se tornavam produtivas, eram ilegalmente concedidas aos narconins (antigos cobradores de impostos) e aos negociantes de Sanquelim. Escreve a este propósito o sr. Visconde na obra citada a fls. 23:
“Por isso, há aproximadamente 16 anos, os gauncares e os roitos dessa província pediram em aforamento as respectivas aldeias, prometendo como foro a renda atual e mais uma quarta parte. Esta pretensão tinha as seguintes vantagens – formava uma associação de gaumcares e roitos em cada aldeia, fixava nelas a população, empenhava-se no desenvolvimento da cultura e ligava por esta forma o seu interesse ao da ordem e tranquilidade comuns.
E assim, essa província que em menos de um século se revoltou por mais de 17 vezes, ficava para sempre pacificada pelo interesse da própria população, aumentando o Estado a sua receita, com a prespectiva de a duplicar pelo desenvolvimento da cultura e desbravamento das terras. Mas despertaram-se então as ambições particulares. Indivíduos estranhos aSatary, mas ricos e alguns altamente colocados, pediram em seu nome e no de outros, em aforamento, a melhor daquelas terras. O resultado foi ser posta de parte a pretensão dos ranes gauncares, vindo da metrópole ordens para se lhes aforar apenas umas certas jeiras, o que alem de causar discórdias intestinas, convidou os de fora a virem apossar-se dos terrenos, com nomes e qualidades supostos… Dispondo da protecção do respectivo administrador, dos funcionários subalternos da localidade, e de altos personagens da capital, os narcornins levaram sempre a melhor com os pobres gauncares.”
​É neste ambiente e nessa situação que os gaumcares ranes, desesperados com as injustiças que lhes eram feitas, se juntaram aos revoltosos acantonados no forte de Nanuz. E estes, certamente para agradar aqueles, levaram preso o Dotu Narcornim, com que eles nada tinham, mas só e muito os gaumcares ranes.
​É então que o governo (capitão Gomes da Costa) decide enviar para Sanquelim uma força de 90 praças composta de descendentes, nativos cristãos e europeus. A tropa do governo, bem municiada, ocupava o alto da casa da administração e as casernas que dominam a estrada. Nesta posição vantajosa podia manobrar de modo a obrigar os revoltosos à fuga, atenta a superioridade do seu armamento e a falta de espingardas com a maior parte do inimigo. Mas não fez nada disto. Sem queimar uma escorva, nem operar um movimento, a força governamental, entregou-se com armas e munições aos desertores…” (História da Revolta, pág. 26).
​Os revoltosos, com este sucesso, desceram até Bicholim e dali a Mapuçá e o seu número cresceu a medida que os destacamentos se entregavam aos revoltosos sem a menor resistência. Antes de os revoltosos chegar, já haviam fugido de Sanquelim o administrador do concelho e os empregados fiscais; o administrador de Pernem, o juiz de direito e o delegado de Bicholim, o juiz, delegado e o escrivão da Fazenda de Bardez e também o administrador do concelho de Bardez, genro do visconde, dando parte do ocorrido ao governo.
​Logo que chegaram a Bardez, em 14 de outubro de 1895, os revoltosos fizeram inúmeros arrombamentos, extorsões, violências, crimes, sangue e estragos. Toda a Goa estava em pavor e com medo e os jornais do continente falavam de “sedição da seita negra”. Estes factos serviram para persuadir os demais europeus (que até então equacionavam a revolva na sua justa perspetiva, isto é, como protesto dos maratas que não desejavam partir para Moçambique, abandonando a sua terra), que havia conluio de todas as classes nativas e partidos para o extermínio dos europeus.
​O plano do capitão Gomes da Costa e de um punhado de apaniguados europeus, falhara ou pelo menos se descontrolara. Era preciso um bode expiatório para justificar tamanha desordem, violência e desgoverno. E decidiram que seria o visconde de Bardez. Era ele o motor da revolta. Porquê? Porque alem de ser o chefe do maior partido político do Estado, que censurava os desmandos da administração colonial, era conselheiro dos ranes!
Defende-se o visconde na obra citada, a fls. 56:
“Que alguns dos ranes e muitos dos gauncares e bottos de Satari tem sido meus clientes, sabe-o todo o mundo. Mas não são só meus. Eles o tem sido dos meus ascendentes. Sou na minha família o descendente de cinco gerações de advogados, todos os quais foram mais ou menos notáveis, e clientela de uns passou aos outros, alargando-se a sua órbita por uma grande parte do pais no decurso do tempo. Mas segue-se dali que tudo o que é ou foi meu cliente, é inspirado por mim, e se todos ou alguns dos meus clientes são revoltosos, também o sou? Quando tratava das suas pendencias forenses ou outras, adivinharia eu por ventura que eles seriam um dia revoltosos? E se foram, fui eu que os fiz? É boa vontade de me incriminar. O governo sabia perfeitamente que eu tinha clientes entre essa gente, e porque o sabia, procurou utilizar-se da minha influência para fazer-lhe depor as armas. Pois essa mesma influência que era então um mérito excepcional, torna-se agora um crime? É o modo de ver das paixões.”
​​Porque se preparava uma emboscada do Gomes da Costa, o sr. visconde, avisado por amigos, refugiou-se na Índia inglesa, assim se justificando:
“Custava-me a conceber isso. Todavia julguei dever sair, porque dos homens que mandavam, era tudo de esperar, e saí de facto não às escondidas, mas publicamente
Cinco dias depois, quando já era conhecida a minha ausência, vinha para a minha aldeia esse sr. Gomes da Costa pelas 3 horas da madrugada, com 50 praças, ás quais dava voz de carregar as armas no oiteiro que a domina, cercava a minha casa, e não me encontrando, levava presos uma vizinha, viúva respeitável, sra. R. Maria Dias, a cujo cuidado fora entregue a mesma casa, um criado preto doente por nome Francisco, que nem sabia falar a língua do paise o juiz popular da freguesia, o advogado sr. José Maria Lobo que é meu visinho e viera chamado à minha casa pelo sr. Gomes da Costa. Que necessidade havia para esse aparato bélico que o sr. Gomes da Costa quís ostentar contra um homem inofensivo? Porque não veio oito dias antes e só se resolveu a dar mais esse episódio curioso para a história dos seus feitos e um título para a sua folha de serviços, depois de saber que eu estava fora do paiz? Porque levou presas pessoas inofensivas que o receberam com portas abertas? Sabia o sr. Gomes da Costa que eu não estava em casa, tinha a certeza, posso afirma-lo, de que eu não era revoltoso, nem tinha coisa alguma com a revolta de que ele era um dos protagonistas. E vinha dar provas de bravura à minha custa!” (obra citada, pág. 38)
​Regressado do exílio, o visconde era uma figura acabada. Faleceu em 15-09-1907. Toda a imprensa do Estado da Índia noticiou este triste decesso e o jornal O Ultramar de 16-09-1895, na sua coluna “Goivos e Perpétuas” , escrevia:
“Visconde de Bardez. Na sua casa de Camorlim, sucumbiu, ontem, aos estragos de diabetes, o sr. Inácio Caetano de Carvalho, primeiro visconde de Bardez, nome que tão alto soou em tempos ainda não muito distantes, embora vivesse ultimamente na penumbra, sem, contudo, recusar a quem lho solicitasse o auxílio do seu robusto talento e vasto saber. O sr. visconde de Bardez foi uma personalidade de muita evidência e sempre muito discutida, o que atesta o seu grande valor, visto que não se discutem mediocridades. Advogado distinto entre os distintos, homem de variada cultura, jornalista enérgico e polemista vigoroso, como se provou na Patria de que era ilustrado director, o sr. visconde de Bardez foi também político militante, chefe de um numeroso partido que por muitos anos dominou no concelho de Bardez, dando ao sr. Inácio Caetano de Carvalho uma preponderância que poucos terão gozado e de que ele próprio foi a primeira vítima, tal é o contraste das coisas humanas! É ainda cedo para formar um juízo seguro sobre a eficácia da sua ação política, que foi incontestavelmente grande, numa época em que os ódios pessoais andavam à solta, e que serão talvez a melhor explicação das atrozes perseguições que choveram sobre o extinto, tendo sido até ordenado o seu fuzilamento! Pessoalmente o visconde de Bardez era muito afável e de maneiras insinuantes – homem de prontos e fecundos expedientes e muito dedicado na amizade. Paz à sua alma e nossas sentidas condolências às suas exmas. víuva e filhas e ilustres genros e netos.”
​Também o governador-geral Rafael de Andrade e o capitão Gomes da Costa não tiveram melhores dias. Foram chamados telegraficamente para a metrópole para disciplinarmente responder pelos seus nefandos actos, abusos de poder e arbitrariedades em Goa.
É nessa ocasião que se dá em Lisboa esta caricata ocorrência relatada pelo O Século de 27-04-1896. Ao tempo, um dos deputados de Goa, era o goês Constâncio Roque da Costa. Estava este deputado (que contribuíra para o chamamento telegráfico dos arguidos, Rafael e Andrade e Gomes da Costa, para a metrópole para punição disciplinar) a passear, aproximaram-se dele Rafael de Andrade e Gomes da Costa e este, sem a menor provocação daquele, vibrou no Roque da Costa uma violenta bengalada na sua cabeça que lhe “amarrotou o chapéu alto”. O sr. Constâncio em face disso, meteu a mão na algibeira da calça, onde tinha um revólver antigo, americano, bull-dog, armado com cinco tiros e, empunhando-o, gritou: ” O sr. não me provoque. Não avance porque eu dou-lhe um tiro.” E como o antagonista, Gomes da Costa, persistia no avanço e ameaçador, o sr Constâncio disparou um tiro que foi atingir o capitão na coxa esquerda e disparou nova bala que lhe atravessou a mão. Disparou depois terceiro tiro que foi para o ar e levantou-se quando já o capitão Gomes da Costa recuava e fugia, esvaindo em sangue e deixando duas largas poças. Desde então nada mais se soube dos protagonistas.
Juiz de Direito e jornalista
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