revisitando o Pico (extrato de CHRONICAÇORES uma circum-navegação vol 2 – 2011

Crónica 103 CHRÓNICAÇORES no pico, 9-10 agosto 2011

O Hotel Caravelas tem um nome que já não corresponde à sua atual volumetria. Com as recentes obras, os quartos que – em presépio – se voltavam para a Horta, passaram a ficar voltados uns para os outros sobre a entrada da garagem.
Decerto que a ideia era a de recriar o pátio romano ou árabe, em torno do qual toda a atividade do “lar” se desenrolava, e assim quando alguém ia a uma varanda fumar podia vigiar e espiolhar o que os vizinhos faziam nos seus quartos, numa política de aproximação e integração dos hóspedes na vida comunitária.
Claro que perderam a soberana vista sobre a vizinha ilha do triângulo mas ganharam uma visão privilegiada: uns sobre os outros.
A fachada principal passou para uma rua das traseiras com uma imponente vista do Pico, mas os vidros estavam tão sujos que nem se via a montanha. Obviamente, um mero pormenor que não mereceria reparos, quem quiser ver o Pico que vá lá vê-lo e não se fique no hotel a observá-lo
Na sua imponência, sobranceiro ao pequeno porto da Madalena do Pico ocupa um lugar privilegiado na ilha, por ser a única unidade hoteleira digna desse nome e capacidade abaixo de uma centena de quartos.
As vistas para o Faial e a sua localização privilegiada no coração da vila da Madalena não podem, no entanto, servir de desculpa para o péssimo serviço que proporcionou no verão de 2011 aos seus hóspedes.
Logo que chegam à receção, os clientes são avisados que o insólito check-in ocorre apenas pelas 16 horas…
No caso vertente, após algum esforço e simpatia foi possível convencer a sobrecarregada equipa de limpezas de quartos a proceder aos trabalhos de limpeza do mesmo antes das 15 horas.
A mala vinda no voo da manhã de São Miguel, que aguardava, pacientemente, num canto da receção desde as 09.30 foi finalmente desmanchada, depois de termos sido surpreendidos pelo pedido de pagamento prévio da ocupação dos quartos., supomos que este método revolucionário de cobrar antes da estadia se deve ao facto de poderem evitar reclamações futuras.
Nesse dia e seguintes a bucólica calma da “baixa” da Madalena era interrompida pelo martelar pneumático de berbequins e outros irritantes aparelhos mecânicos numa obra de mudança de painéis de madeira na receção e noutros locais que decerto não poderia ser adiada para uma época mais calma (primavera, outono, inverno).
A juntar a isto uma carrinha dos trabalhadores de carpintaria ocupava um dos poucos lugares do estacionamento na garagem, tão mal concebidos que apenas davam lugar a uma dúzia de viaturas onde bem poderia caber o dobro…convenhamos que estas reparações de emergência em pleno mês de agosto eram um abuso da paciência e do direito ao descanso dos veraneantes incapazes de dormirem a sesta que os locais acreditavam ser prerrogativa exclusiva dos espanhóis.
Ao pequeno-almoço, o café de saco foi servido frio, calculando-se que ali tivesse sido colocado pelas 07.30 e como a temperatura ambiente era de 28 ºC os funcionários deveriam calcular que se mantivesse quente após duas horas.
Quando interrogada uma funcionária sobre a possibilidade de ter um café expresso, foi dito perentoriamente que teríamos de nos deslocar à receção a pedi-lo pois ela não podia ir lá…mandou-me a mim…
Gostei desta atitude que revela determinação e iniciativa, para os hóspedes não ficarem sentados à espera que as coisas lhes apareçam à frente.
Assim, contrariamente ao que aconteceu tantas vezes não tomei o café expresso ao pequeno-almoço.
A contragosto, contrafeito, contrariado, incomodado, irritado, saí momentos depois e fui tomá-lo ao bar esplanada, mesmo ao lado, o Caipirinhas Park, onde o solicito brasileiro pela segunda manhã que me viu mandou servir-me a habitual italiana e o café curto da minha mulher…sem ninguém sequer ter tempo para pedir…Não acredito que lhe venham a dar emprego no Caravelas…

Demos um passeio pela ilha até à inolvidável e sempre quente Prainha onde nos deliciamos – comme d’habitude – no “Campo do Paço” restaurante recomendável a quem gosta de boa comida, embora o serviço seja sempre para o lento mesmo com pouca clientela como era o caso.
Viemos dormir a sesta ao hotel e para nosso espanto o quarto estava por arrumar embora o sinal a pedir a limpeza do mesmo ali estivesse pendurado desde as dez da manhã….
Nessas cinco horas a brigada de limpezas não tivera tempo. Questionada a receção foi-nos dito que era por o hotel estar cheio…
Esta resposta que não chegou para me enfurecer daria motivo a reflexão diversa após termos constatado que a empregada da firma de aluguer de carros ajudava a limpar a piscina e ajudava na receção. O motorista que nos fora buscar ao aeroporto andava a aspirar e a fazer manutenção de equipamento da piscina…aliás este “multitasking” ou utilização intensiva de pessoal em tarefas múltiplas só demonstra a alta capacidade de motivação dos patrões que com reduzido orçamento e um aproveitamento máximo dos recursos humanos põe toda a gente a desempenhar todas as funções possíveis
A ida à piscina do hotel permitiu comprovar que a crise é um mito, e apesar destes turistas serem, na maior parte, do tipo mochileiro, ou pé descalço sem desprimor para os que optam por andar descalços…o certo é que os havia de todas as nacionalidades: franceses, alemães, espanhóis e italianos.
As novas gerações cheias de tatuagens e “piercings” numa versão século XXI dos hippies que dantes havia, andavam pela ilha mais interessadas em baleias e mergulhos do que em gastar divisas noutras atividades, além dos habituais “copos”.
Aliás, estes turistas que enxameavam a ilha dividiam-se em dois grupos os de mais de 50 anos e os de menos de 30…
Eis senão quando na piscina irrompe uma senhora matrona, carregada de joias (embora não me pareça que a piscina seja o sítio ideal para tal ostentação…mas é a minha opinião apenas) a admoestar em voz alta uma adolescente que há mais de meia hora insistia em saltar para a piscina junto das pessoas que ali nadavam.
Depois de ralhar profusamente com a jovem por esta não ter acorrido de imediato ao chamamento e à oferta de um gelado, a senhora bradando em alta voz tentava negociar uma viagem de táxi na ilha com a duração de quatro horas, como se os restantes habitantes daquela piscina tivessem necessidade de o saber….
Mas os espanhóis que eram os mais alarves e ruidosos naquela multidão não pareciam incomodados por estas vocalizações propagadas pelo rossio que soprava do Canal.
Ao observar todos estes seres humanos que me rodeavam – tive, uma vez mais – a sensação de estar num jardim zoológico preenchido por bípedes que tentam sobressair da turba abusando da sua voz.
Até os pássaros andavam afugentados. Podia inclusive haver alguém interessado em fazer um aprofundado estudo psicológico neste ambiente, mas pela parte que me dizia respeito tinha para ler um excelente livro de Deolinda da Conceição, mãe do meu amigo Toning Conceição de Macau.
“Cheong-sam (a cabaia) ” descreve-nos em pequenos contos, delicados e deliciosos, diversas cenas da China e de Macau nos anos 50, e ali estava eu a observar um zoológico tão diferente no trato, na fala e nos costumes.
Havia um enorme fosso a diferenciar o respeito pelos outros e pelas convenções sociais ou seria apenas por me custar deglutir o grotesco espetáculo que me rodeava e me invadia a privacidade desta escrita com seus sons tonitruantes e alarves?

Como sempre esta ilha atrai-me com a sua magia magnética que nos persegue e a qual tentei traduzir no fecho do meu curto discurso na apresentação do livro nas Lajes do Pico, com a presença de mais de uma vintena de pessoas e para a qual a Direção da Cultura mandou deslocar da ilha Terceira o diretor do IAC, Eng.º Paulo Raimundo, que juntamente com o diretor do Museu dos Baleeiros, Manuel da Costa Júnior fizeram a abertura da sessão no próprio Museu dos Baleeiros.
Na assistência contava-se o bom amigo Vasco Pereira da Costa. Fiquei menente com a importância que a DRAC deu ao assunto e com a presença de tanta gente incluindo o nonagenário Comendador Ermelindo Ávila, jornalista, escritor e personalidade picoense emérita bem lúcido nos seus 96 anos, presença esta que muito me sensibilizou, em especial ao ver que no final, na sessão de autógrafos, não aceitou passar para a frente das restantes pessoas, esperando pacientemente a sua vez.
A propósito desta personalidade cumpre recordar aqui o que disse recentemente em entrevista ao Correio dos Açores:
“Julgo que tenho um relacionamento normal com todas as pessoas, das mais diversas atividades sociais incluindo, portanto, aqueles que são escritores. Recordo neste momento, além de outros, o Padre Xavier Madruga, que considero o meu Mestre, o escritor picoense Dias de Melo, a quem me ligava uma amizade familiar de muitos anos, o professor Emanuel Félix, já falecidos e dos vivos Manuel Ferreira e Daniel de Sá, além de outros mais.
Nunca recebi qualquer quantia por aquilo que escrevo há setenta e oito anos. Se esperasse por algum provento da escrita, andava hoje a pedir esmola, ou estava internado num asilo. Escrevo porque isso me dá prazer e é o quanto basta neste ocaso da vida”

Para registo e memória futura aqui fica o breve discurso que ali (Lajes do Pico) proferi no lançamento:
Boa noite a todos e obrigado pela vossa presença
A ChrónicAçores retrata os meus amores ilhéus. Além da literatura dos Açores, viaja de Bragança à Austrália, e aos meus amores por São Miguel, Santa Maria, São Jorge, Faial e Pico.
Aliás a inquietude persegue-me desde que deixei a Europa em 1973 e me abri ao conhecimento universal e multicultural.
Adquiri uma errância mais própria de nómadas ciganos do que das origens sedentárias de marrano galaico-português. Esta inconstância assola-me ainda mais desde que me arquipelizei nos Açores há mais de seis anos.
Sou conhecido pela infidelidade no amor às ilhas que habito. De cada vez que saio da Ilha verde – e visito ou conheço nova ilha – enamoro-me loucamente como um jovem adolescente de sangue quente em busca de paixões avassaladoras como são os amores da juventude. Só posso viver numa mas em todas quero estar em simultâneo, pois nelas me sinto em casa.
Como pode uma pessoa vinda de outras culturas e continentes entender estas ilhas e suas idiossincrasias? Pois bem, eu não só acredito em multiculturalismo, como sou um exemplo vivo do mesmo. Nasci numa família mesclada de Alemão, Galego, Português e Brasileiro do lado paterno e do lado materno, Português e marrano, sangue de judeus conversos. Só tarde me apercebi desta herança judaica que foi tão importante no povoamento destas ilhas.
Aos 23 anos publiquei o meu primeiro livro de poesia “Crónicas do Quotidiano Inútil”. Depois por cortesia do exército colonial fui defender o agonizante Império Português em Timor (1973 1975) onde fui Editor-chefe do jornal A Voz de Timor em Díli, antes de ir à Austrália e decidir adotá-la como pátria futura.
Comecei a interessar-me pela linguística ao ser confrontado com mais de 30 dialetos em Timor. Desde 1967 dediquei-me ao jornalismo (rádio, televisão e imprensa escrita) e durante 24 anos escrevi sobre o drama de Timor Leste enquanto o mundo se recusava a ver essa saga.
De 1976 a 1982 desempenhei funções executivas na administração da Companhia de Eletricidade de Macau.
Ali também fui Redator, Apresentador e Produtor de Programas para a TDM, RTP Macau e TV de Hong Kong. Depois, radicar-me-ia em Sydney (e, mais tarde, em Melbourne) como cidadão australiano.
Na Austrália estive sempre envolvido nas instâncias oficiais que definiram a política multicultural do país e ainda hoje me definem. Fui Jornalista no Ministério do Emprego, Educação e Formação Profissional e no Ministério da Saúde, Habitação e Serviços Comunitários além de ter sido Tradutor e Intérprete no Ministério da Imigração e no Ministério de Saúde de Nova Gales do Sul.
Divulguei a descoberta da Austrália e vestígios da chegada dos Portugueses (1521-1525, mais de 250 anos antes do capitão Cook).
Igualmente difundi a existência de tribos aborígenes falando Crioulo Português (há quatro séculos). Como Membro Fundador do AUSIT (Australian Institute for Translators & Interpreters), lecionei em Sidney na Universidade UTS, Linguística e Tradutologia bem como Estudos Multiculturais a candidatos a tradutores e intérpretes.
Por mais de vinte anos, fui responsável pelos exames dos Tradutores e Interpretes na Austrália (NAATI National Authority for the Accreditation of Translators & Interpreters).
Fui Assessor de Literatura Portuguesa do Australia Council, na UTS Universidade de Tecnologia de Sidney (1999-2005), publiquei trabalhos em jornais e revistas académicas e científicas, e apresentei temas de linguística e tradutologia e literatura na Austrália, Portugal, Espanha, Brasil, Canadá, China, etc.).
Em 1999, escrevi o ensaio político “Timor Leste: o dossiê secreto 1973-1975”, a que se seguiu em 2000 a monografia “Crónicas Austrais 1976-1996”. Em 2005 compilei e publiquei o “Cancioneiro Transmontano 2005” e outro volume dos contributos para a história “Timor-Leste vol. 2: 1983-1992, Historiografia de um Repórter” (> 2600 pp., edição de autor CD).
Entre 2006 e 2010, traduzi, entre outras, obras de autores açorianos para Inglês, nomeadamente de Daniel de Sá , de Manuel Serpa , Victor Rui Dores” .
Em março 2009 publiquei o volume 1º da “ChrónicAçores: uma Circum-navegação, De Timor a Macau, Austrália, Brasil, Bragança até aos Açores, ” cronicando as minhas viagens em volta do mundo.
Organizo desde 2001 os Colóquios Anuais da Lusofonia que ocorreram no Porto, Bragança. Ribeira Grande e Lagoa (São Miguel, Açores), Brasil e Macau e sou atualmente o Editor dos Cadernos (de Estudos) Açorianos, coordenados por Helena Chrystello e Rosário Girão e livremente acessíveis em linha.

Este segundo volume continua a minha circum-navegação.
Na lenda havia um Rei Artur, Sir Galahad, os cavaleiros da Távola Redonda e a busca pelo Santo Graal. Aqui não há Dom Quixote, nem Sancho Pança nem moinhos de vento, contra os quais espadanar. Há apenas um poeta utópico, sequioso de aprender outras línguas, hábitos e culturas.
Da infância em Trás-os-Montes, parti à conquista do “lulic” em Timor Português, dos hippies em Bali (Indonésia), sobrevivi ao “Anno Horribilis” no verão Quente de 1975 em Portugal, atravessei as Portas do Cerco na China de Macau, percorri a Austrália Ocidental, Vitória e Nova Gales do Sul, com passagem pelo Oriente do Meio e seus emirados, Europa, Ásia e Pacífico Sul, antes de redescobrir o Brasil e Portugal.
Por fim, pairei nos ares como um milhafre sobre a ilha de S. Miguel donde voei em conquista de Santa Maria, Faial, Pico e S. Jorge.
Se na Austrália encontrei uma tribo aborígene a falar crioulo português com mais de 450 anos, descobri na antiga Bragança a mátria e nos Açores descobri o que a maior parte do mundo desconhecia: uma pujante literatura.
Esta viagem leva-nos num périplo pelo mundo em que vou cronicando tal como Marco Polo, as terras, as gentes e os costumes e tradições.
Da análise política, social e pessoal parto à descoberta de culturas antes de regressar ao seio duma Lusofonia sem raças, credos ou nacionalidades, até me radicar na “Atlântida” onde desvendo e divulgo a fértil literatura açoriana catapultadora de autonomias e independências por cumprir.
Falta aqui agradecer à minha lisboeta mulher radicada no Porto, por ter casado comigo. Sem isso estaria na Austrália e nunca teria conhecido os Açores e a açorianidade de que falo neste livro.
Acredito na multiculturalidade. Dela absorvi e aprendi mais, nesses países onde vivi, do que qualquer universidade me poderia ensinar.
Com os aborígenes australianos compreendi que é possível preservar a nossa língua e cultura mesmo sem ter uma escrita por mais de 50 mil anos.
Com os chineses descobri o valor do futuro com base nos ensinamentos do passado.
Com os timorenses, macaenses e tantos outros aprendi outras partilhas de saber que ainda hoje fazem parte do meu quotidiano.
Como se pode optar por ficar aqui nestas ilhas e descurar todos os mundos que existem para lá deste arquipélago?
É simples, uma pessoa fica ilhanizada como Almeida Firmino em A Narcose, como se os outros mundos não tivessem importância a não ser para divulgar o segredo da existência de uma importante literatura de cariz açoriano.
Foi preciso descer à Praia da Viola na Lomba da Maia onde vivo, subir ao Monte Escuro e aos sempiternos verdes montes, ver as vacas alpinistas e o mar que nos rodeia para entender a açorianidade que nos leva a escrever.
Depois, é preciso viajar entre estas nove filhas de Zeus e entender os maroiços do Pico ao sabor do seu Verdelho, calcorrear o Barreiro da Faneca, pisar as areias esbranquiçadas de Porto Pim e meditar em frente ao ilhéu do Topo.
É essencial partir à descoberta de cada ilha, sonhando com Dias de Melo nas agruras e na fome dos baleeiros, reler o Mau Tempo no Canal, parar num qualquer aeroporto e entender o Passageiro em Trânsito do Cristóvão de Aguiar, ler em voz alta a poesia do Fogo Oculto de Vasco Pereira da Costa, Viajar com as Sombras ou com o Tango nos Pátios do Sul de Eduardo Bettencourt Pinto, depois de revisitar as pedras arruinadas do Pastor das Casas Mortas ou a Grande Ilha Fechada de Daniel de Sá.
Escolhi estes que melhor conheço mas há muitos outros autores açorianos que não só merecem ser lidos, como deveriam constar obrigatoriamente de qualquer currículo de ensino.
Toda a minha vida foi uma circum-navegação. Se nos anos 70 designei para pátria a Austrália nunca deixei de conjugar a outra de Fernando Pessoa, a língua portuguesa. Hoje tenho como mátria Bragança mas aos açorianos o devo pois foram eles que me ensinaram o amor às raízes. Ao vê-los tão amantes das suas terras tive de descobrir as minhas origens em Bragança onde vivi menos tempo do que em qualquer outro lugar. Sinto como todos transportam esse sentimento de pertença aqui e no estrangeiro.
Quando aqui cheguei desconhecia quase tudo sobre as ilhas, mas descobri no Dicionário do Morais os termos “chamados” açorianos. A língua recuada até às origens e adulterada pelo emigrês que trouxe corruptelas aportuguesadas e anglicismos.
Tratei de desvendar o arquipélago como alegoria recuando à sua infância, sem perder de vista que as ilhas reais já não podem ser só perpetuadas nas suas memórias. Nesta geografia idílica não busquei a essência do ser açoriano.
Existirá, decerto, em miríade de variações, cada uma vincadamente segregada da outra. Também não cuidei de saber se o homem se adaptou às ilhas ou se estas condicionam a presença humana, para assim evidenciar a sua açorianidade.
Limitei-me a observar e a analisar o que me rodeia e depois passei ao papel essas crónicas do mundo que me envolve.
Aliás, estou convencido de que uma das razões para haver aqui tantos escritores se deve exatamente ao facto de vivermos nestas ilhas.
Cito do livro:
A ilha para Natália Correia é Mãe-Ilha, para Cristóvão de Aguiar, Marilha, para Daniel de Sá, Ilha-Mãe, para Vasco Pereira da Costa, Ilha Menina, para mim nem mãe, nem madrasta, nem Marília nem menina, mas Ilha-Filha, que nunca enteada. Para amar sem tocar, ver dilatar nas dores da adolescência que são sempre partos difíceis. Toda a vida fui ilhéu. Perdi sotaques mas não malbaratei as ilhas-filhas. Trago-as comigo a reboque, colar multifacetado de vivências de mundos e culturas distantes. Primeiro em Portugal, ilhota perdida da Europa durante o Estado Novo, depois em um capítulo naufragado da História Trágico-marítima nas ilhas de Timor e de Bali, seguido da ínsula de Macau (fechada da China pelas Portas do Cerco), da imensa ilha-continente Austrália, e na ilhoa esquecida de Bragança no nordeste transmontano, antes de arribar a esta Atlântida Açores.
Tudo começou quando traduzi autores açorianos como Daniel de Sá e Victor Rui Dores entre outros. Acabei cativo e apaixonado. Tive de escrever para me libertar da poção mágica do arquipélago e daí nasceu “ChrónicAçores: uma circum-navegação”. Por isso escrevi
Que Dias de Melo era um operário, agricultor, pescador, escultor que trabalhava, ceifava, pescava e esculpia a palavra como um baleeiro, pescador, marinheiro, mestre de lancha da ilha do Pico. Escreveu como se da janela da sua “Cabana do Pai Tomás” no Alto da Rocha na Calheta de Nesquim, vigiasse os botes e as lanchas da Calheta, baleando contra os Vilas e os Ribeiras
Que Cristóvão de Aguiar psicanalisou as gentes e a terra que o viram nascer mas adotou o Pico como nova ilha mátria em 1996. Para ele a escrita nunca será catarse, título do seu mais recente livro, pois é fruto de amores incompreendidos entre si e a sua ilha…Como diz (Relação de Bordo II pp. 199-200) Primeiro foi a ilha, nunca mais a encontramos como a havíamos deixado…trouxemos somente a imagem dela ou então foi outra Ilha que connosco carregámos…
Que Vasco Pereira da Costa é um apaixonado que representa a universalidade da açorianidade nos seus contos e poemas, sem jamais descurar o telurismo na sua escrita, sendo sarcástico e crítico do falso cosmopolitismo insular quer na crítica à mentalidade medíocre quer no provincianismo balofo que critica na multiplicidade da sai obra que vai desde o conto e a novela, até à memória e à “crónica” breve, passando pela Poesia

Num mundo marcadamente materialista como este, decidi que a minha herança para os filhos seria esta riqueza dos conhecimentos que colecionei ao longo da minha circum-navegação e que agora condensei em livro. É disso que este livro fala.
E continuo a citar alguns excertos:
Tivesse eu fôlego e iria ao mítico Pico da Atlântida submersa, cujo magnetismo me fascina ao ponto de desejar, vezes sem conta, mudar de armas e bagagens para este Triângulo Sagrado onde prometo fazer imolações e outros sacrifícios nas aras do destino.
Não sendo das Bermudas este triângulo isósceles, que nunca escaleno obsceno, seria ótimo pousio final para as minhas cinzas quando chegar a estação de fazer como as cobras e trocar de pele. Despir a bela capa colorida terrena, de seis decénios, e vestir o cinzento das cinzas que seriam lançadas nesta lendária Atlântida de continentes submersos cujos picos vocês habitam.
Aqui, na Gruta das Torres senti-me um salteador da Arca perdida à sombra do Pico que, ora se esconde, ora se revela num jogo constante do gato e do rato, que entusiasma e arrebata. Sinto o sortilégio. O mágico cume tem um íman que atrai a visão e nos desconcentra, sempre insistindo para o contemplarmos nas suas mil e uma facetas alteradas a cada segundo.
Quero salientar que é uma honra estar aqui nesta vila que foi a primeira da ilha, feita de gente que ao longo dos séculos sempre soube arcar com todas as dificuldades e domar a lava com ferros e marrões até amontoarem a pedra em enormes “maroiços”, autênticos monumentos num rendilhado de paredes, tarefa hercúlea como tantas outras que as gentes do Pico empreenderam ao longo de cinco séculos de colonização da agreste ilha, sem esquecer a luta titânica que nos seus pequenos botes travaram durante um século contra a baleia e ora descobrem novas formas de vida.
Da última vez que aqui estive, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, ao andar rumo à casa do escritor Cristóvão de Aguiar deparei com uma camioneta de passageiros, estacionada, aguardando o início de nova semana de trabalho.
Ali me ocorreu a ideia peregrina de como seria culturalmente interessante a aventura de “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando.
A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos seus passageiros. Não se cobrariam bilhetes.
Pararia em todos os locais, para que contassem histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos. Assim me despedi da ilha prometendo voltar com mais tempo.
Termino dizendo que esta é a magia da vossa ilha que se insinua como uma amante insaciada, mulher fatal capaz de marcar os destinos de todos os homens que têm a sorte de a encontrar.
Bem hajam pela vossa paciência para me ouvirem pois vou terminar lendo o único texto em que uso termos típicos das nossas nove ilhas.


Crónica 104 – passageiros com pouco trânsito – 12 agosto 2011

Parado no aeroporto não sou o Passageiro em trânsito do Cristóvão de Aguiar, nem carrego o Fogo Oculto do Vasco Pereira da Costa, antes deixo que os ponteiros do relógio caiam lentamente, minuto após minuto, por entre o linguajar dos que, comigo, esperam o avião.
Não tenho vontade de partir, permaneço sentado no pátio de observação do aeroporto da Horta, estou de frente para o Pico que me pisca o olho, sorrateiro, por entre as nuvens, escondendo-se, amiúde, dos meus olhos perscrutadores.
Ao contrário de Cristóvão de Aguiar não carrego comigo a ilha e a que transporto não é outra. Não trago a reboque este arquipélago mas deixar a ilha é sempre uma partida sem regresso marcado, como quem faz um luto indesejado ao correr dos dias.
Não levo comigo a dor nem a lágrima furtiva, apenas acalento sempre o desejo do regresso numa noite de luar como o de ontem.
Quando houver estrelas no céu quero que sejam as minhas, colar de pérolas para afagar pescoços.
Há por aqui passageiros dos quatro cantos do mundo com especial enfoque para os de pé descalço ou mochileiros.
Nem a todos descortino a língua que falam, embora as mais comuns sejam o italiano, francês, alemão e castelhano. Nos intervalos ouvem-se sons que não descodifico.
Todas as pessoas inventam formas diferentes de esperar mas hoje, a maioria está silenciosa como o país em luto prolongado por uma crise como não há memória.
Uns leem, outros brincam com os novos gadgets de tecnologia avançada, tablets, telemóveis de última geração, Ipads, Ipods.
Dizia-me há dias o Victor Rui Dores que estava em Londres “devo ser o único aqui sem PC nem outro instrumento”. Não há português a viajar sem computador ou similar. Eu também viajava assim no início dos anos 90 mas agora que é comum, prefiro viajar sem eles e aproveitar para me desligar do mundo, sentir-me em férias de notícias, desgraças, calamidades e correio eletrónico.
Há um casal de meia-idade sentado a uma mesa, não muito distante da minha, ele escreve à moda antiga em grafia rápida com um cigarro na mão, ela lê um livro em papel. Parecem calmos e não temem a passagem do tempo, nem tampouco o apressam para apanharem o avião. Ele olha o Pico de frente, como um toureiro frente ao animal e espera que ele invista. Ela mantém-se na sombra sob o guarda-sol de costas para a montanha, embrenhada na leitura.
À sua volta, uma família emigrada prepara o regresso aos EUA com a avó a tiracolo, meio atarantada com o bulício e com as netas que não param de teclar.
Mais à direita, um casal alemão aparenta ter acabado de sair das quentes águias do mar e ter-se esquecido de tomar banho na última quinzena.
Um pequeno grupo de italianos, de ambos os sexos, falam incessantemente enquanto o casal francês a seu lado permanece silencioso.
Nem uma palavra trocou na última hora. Provavelmente já disseram tudo o que tinham para dizer ao longo dos anos e faltam as palavras para colmatar os silêncios.
Há espanhóis espalhafatosos, um açoriano pai que ouve a filha com atenção, talvez não tivesse tido tempo durante o ano para a escutar e nem se dá conta do zangão que voa agressivamente tentando pousar numa garrafa de cerveja abandonada na mesa que partilham.
Entretanto, com a chegada do voo TAP de Lisboa, muitos se levantaram para o verem aterrar, debruçados nas amuradas de cimento vermelho e azulejos azuis.
Muitos não voltaram às mesas da esplanada, deviam ter encontro marcado no voo de regresso. Outros, prosseguiram as suas atividades como se nada se tivesse passado, como se aquele avião não lhes dissesse respeito, ou como se já tivessem visto demasiados aviões, e só aguardavam outra ligação interilhas.
Lentamente, os carros de aluguer enchiam o parque de estacionamento que estivera vazio toda a tarde. Os táxis, carrinhas de transporte e autocarros iam chegando e esvaziando o seu bojo de passageiros com encontro marcado com o destino.
A senhora que lia um livro em papel, de vez em quando, erguia os olhos para o marido com um sorriso enigmático que só eles deveriam conseguir traduzir enquanto ele fitava o Pico em busca de uma oportunidade fotográfica que a montanha continuava a recusar.
Ambos vestiam roupa do Peter’s da cabeça aos pés e carregavam mais vestuário em duas sacas da mesma marca. Seria preferência obsessiva ou falta de alternativas?
Esta e outras perguntas jamais seriam feitas, pois passado algum tempo, levantaram-se, deitaram o lixo no contentor e prosseguiram para a sala de embarque.