RABO DE PEIXE SEM AULAS PRESENCIAIS

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Devido ao elevado número de casos, as medidas de combate à pandemia foram mais duras na vila açoriana. Ainda assim, em oito ilhas dos Açores as escolas não estão fechadas
Chove copiosamente em Rabo de Peixe, na ilha de São Miguel. Abrigados da chuva, virados para o mar e debaixo de um alpendre, estão dezenas de pescadores a preparar os iscos para, passada a tempestade, voltarem ao mar. As mãos, besuntadas de sal e com um intenso cheiro a peixe, enchem centenas de anzóis com cavala.
Floriano Tavares anda pelo porto de pesca da vila, o maior da ilha, desde as quatro da manhã. É o mais ágil. Entre tarefas, levanta-se e volta a sentar-se em segundos. Há dias acabou de virar a tão esperada esquina dos 18 anos. “Ajoelhei-me até, fiquei safo da escola, nunca gostei da escola, nunca.” Diz que desde que começou a pandemia nunca mais teve contacto com os professores. “Eles faziam de tudo para eu estar amarrado a alguma coisa mas eu nunca quis, nunca liguei para os professores, nunca voltei à escola”, garante. Tem o “quinto ano atrasado” e nunca quis ser outra coisa que não pescador.
Desde miúdo que ele e os seis irmãos estão sob a guarda da avó. “Os pais não quiseram saber mais deles”, ouve-se o colega do lado de Floriano. “Já recebi a carta da CPCJ (Comissão de Proteção de Crianças e Jovens) e acho que ainda vou receber um telefonema para ir à PJ mas eu não tenho pena nenhuma de deixar a escola”, garante. A taxa de abandono escolar nos Açores é mais do dobro da nacional (27% em 2019 – Pordata).
O ENSINO À DISTÂNCIA TEM DE SER UM ENSINO DE ÚLTIMO RECURSO”
O corte de relações com o ensino não é exclusivo de Floriano. “Da última contagem que fizemos, no mês passado, tínhamos 74 por cento de alunos a participar nas aulas e 26 por cento a não participar nem uma vez sequer nas aulas nem a enviar as tarefas.” O desabafo, antecedido de um suspiro, é do presidente do conselho executivo da Escola Básica Integrada (EBI) de Rabo de Peixe. Reconhece que, entretanto, mais alunos terão entregado mais trabalhos, mas “a pandemia agravou o abandono escolar, claro. Aqueles para quem o ensino presencial já era difícil, no ensino à distância mais difícil é”, sublinha André Melo. “Não temos dados nem regionais nem nacionais que façam esse tipo de correlação”, precisa a secretária regional da Educação dos Açores, Sofia Ribeiro. Esta responsável reconhece que “não há nada que substitua o ensino presencial” e defende que “o ensino à distância tem de ser um ensino de último recurso”.
Este último reduto está a ser perpetuado em Rabo de Peixe há meses. Devido ao elevado número de casos de covid-19, as escolas da vila estão encerradas desde novembro do ano passado. O Ministério da Educação confirma ao Expresso que nenhuma escola esteve tanto tempo fechada no continente como em Rabo de Peixe.
“De facto, é o lado negativo deste combate à pandemia, as escolas da vila foram as mais afetadas, fruto de um aumento substancial e consolidado no tempo, de casos”, reconhece o Presidente da Comissão de Acompanhamento da Luta Contra a Pandemia nos Açores, Gustavo Tato Borges. Este responsável sublinha que os esforços de contenção da pandemia na vila — que registou centenas de casos positivos de covid-19 durante os últimos meses — acabou por compensar. “Neste momento a vila de Rabo de Peixe já só tem 9 casos e previsivelmente em breve passará a ter apenas dois, o que nos deixa bastante satisfeitos.”
“ELAS QUEREM APRENDER MAS NÃO TÊM AJUDA”
No número 16 da Rua do Mar, as aulas são avulso e sem a voz do professor, há quatro meses. Na mesma casa moram um casal, quatro filhos e duas sobrinhas — que ficaram à guarda da família depois da morte da mãe. Samira está no sexto ano, Marina e Amanda estão no quarto e Cristiano também frequenta o ensino básico. Para o mais velho, que está sempre com aulas online, há um computador. Para as três mais novas, um tablet e telemóveis. “É muito complicado, porque elas dizem que há muita coisa que só a professora lhes pode ensinar”, desabafa a mãe, Odete Vieira, que está com os filhos em casa e vai ajudando como pode.
Odete diz que as aulas síncronas não fazem parte da rotina das mais novas. “Vou buscar as fichas à junta de freguesia, elas fazem em casa, eu tiro as fotos e mando para a professora pelo messenger e depois recebo a nota no telemóvel”, explica Odete. “Elas sofrem muito mais assim, elas querem aprender mas não têm ajuda”, lamenta.
O responsável da EBI de Rabo de Peixe, André Melo, diz que há professores a “a usar os próprios telemóveis para, muitas vezes fora de horas, telefonar para esses alunos, falar um pouco com eles para ajudar a realizar as tarefas por telefone”. André Melo garante que do lado dos docentes tem havido “alguma sensibilidade para que não se prejudiquem os alunos nestas condições, valorizando toda a participação que o aluno tem”.
Samira esteve sempre calada durante toda a conversa com o Expresso e Cristiano não quis descer ao piso de baixo. As três meninas partilham o sofá da sala para os trabalhos à distância. Amanda concorda com a mãe. “Eu não tenho feito muitos trabalhos porque a minha mãe já não se lembra de muitas coisas. Às vezes vou pesquisar ao Google, mas também não ensina muita coisa, porque a minha mãe mandou as fotos para a professora e estava tudo errado”, lamenta.
SÃO MIGUEL É A ÚNICA ILHA AÇORIANA COM ESCOLAS ENCERRADAS
Para minimizar os danos causados pelo ensino à distância, o Governo dos Açores lançou um concurso internacional para aquisição de cinco mil computadores para serem entregues às escolas. Foi também criado um programa especial de acompanhamento para as escolas de Rabo de Peixe. “É um modelo de acompanhamento semanal com os professores, para se inteirarem do progresso dos trabalhos do aluno, de forma presencial e com um número reduzido de alunos que não permita ajuntamentos”, explica a secretária regional da Educação.
“Elas têm só uma hora de apoio, mas uma hora só não dá, eu levei a mais nova com sete anos e numa hora ela só fez um desenho”, lamenta Odete Vieira.
A pandemia é gerida a diferentes velocidades em cada uma das nove ilhas dos Açores, distantes e distintas no número de infeções. São Miguel sempre concentrou a quase totalidade de casos de covid-19 e é atualmente a única ilha onde as escolas estão encerradas e com ensino à distância. Nas restantes oito, as aulas são presenciais.
Enquanto decorria o fecho generalizado das escolas no continente, a maioria dos alunos de São Miguel já tinha retomado o ensino presencial. Mas o avanço da estirpe inglesa na maior ilha açoriana fez com que as portas se voltassem a fechar a uma semana das férias da Páscoa. “Verificou-se que a proporção de casos nos últimos 14 dias associados à faixa etária dos zero aos nove anos duplicou, o que denota que esta variante tem de facto uma apetência especial pela camada mais jovem da população”, revela Gustavo Tato Borges. De acordo com o responsável pela Comissão de Acompanhamento da Luta Contra a Pandemia nos Açores, e à exceção de Rabo de Peixe, os alunos da região “nunca estiveram com as escolas fechadas mais tempo do que no continente, nem São Miguel”, onde a situação sempre foi mais crítica.
O Executivo regional prevê reabrir as escolas que fecharam logo que terminem as férias da Páscoa, em meados de abril. Mas à velocidade a que tudo muda, nada é garantido. E nem Odete quer falar disso. Diz-se “muito orgulhosa” da sua terra – “somos muito amorosos uns com os outros” – e ficou muito triste “pela forma como trataram Rabo de Peixe”.
As oito pessoas que tem em casa também foram, há semanas, apanhadas pelo vírus, uns com sintomas ligeiros, outros sem qualquer sinal da doença. Considera que a vila foi “muito prejudicada”: “exageraram muito, não era justo os comentários que líamos no Facebook só por termos casos.” Não sabe exatamente quando é que os dois filhos e as duas afilhadas vão finalmente poder voltar à escola mas também não quer pensar nisso.
À porta de casa tem um anjo e um azulejo com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Na sala, outra imagem, com um metro de altura, está sempre iluminada por uma vela transparente e artificial. “É a fé que nos salva, há de ser o que Deus quiser”, despede-se.
(Sara Sousa Oliveira – Expresso de 25/03/2021)
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  • Infelizmente não existe jornalismo de investigação por cá nem este tipo de notícia tirando o jornalismo está muito condicionado por aqui tirando o Osvaldo ou Ana Paula ou Carmen Ventura o resto e o que se sabe…

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