“Quis custodiet ipsos custodes?”

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“Quis custodiet ipsos custodes?”
Juvenal
A contemporaniedade parece ser incapaz de estabelecer equilíbrios. Vivemos um tempo de permanentes extremismos. Sem pontes, sem cinzentos, sem o estender de mãos ao outro lado. Já não estamos sequer a falar de polarização, mas de permanente e absoluta oposição. Se vivêssemos num tempo de filósofos Maniqueu seria de novo profeta, o novo herói da geração tweet. Como se o mundo todo só pudesse ser uma de duas coisas, ou tik ou tok. E, na correria do moderno, perdemos, pelo caminho, a consciência de que é aquele Se, de Kipling, que é fundamental.
Assistimos a isso com a pandemia, em que toda a dúvida era sancionada e todos aqueles que questionassem a maioria eram marcados como negacionistas, numa espécie de versão sanitária do “senão estão comigo estão contra mim”. E vemos isso agora, na dicotomia pro e contra Putin. É como se a possibilidade da concórdia e do consenso, o middle ground britânico, tivessem sido obliterados do léxico político e mediático. De certa maneira, deisitimos de pensar. Perdemos o diálogo, a capacidade de debate e essa matéria prima essencial do pluralismo, o respeito.
Ser-se pro Ucraniano não significa, por automatismo, ser anti Russo. Ser contra o imperialismo americano não implica, automaticamente, ser pro Putin. Este é um território minado, repleto de areias movediças e zonas cinzentas, onde a pureza de princípios e a virtude está obscurecida com os excessos de ambas as partes. Ao inqualificável e horrendo gesto de agressão de Putin, o Ocidente respondeu com a tibieza e o maquiavelismo de Bismarck e Kissinger. ‘Vamos ver como se aguentam os Ucranianos e depois logo fazemos alguma coisa que a Rússia é que nos aquece o campingaz…’ Em boa verdade, foi a resistência de Zelensky que forçou o braço da UE e dos EUA.
Do outro lado da barricada ideológica, como num yin-yang infantil de argumentários políticos, querem impingir-nos que Putin é uma vítima da pressão agressiva da NATO e que, pobre diabo, apenas se está a defender da agressão do imperialismo democrático ocidental. Este tipo de narrativa delirante pretende iludir de que é Putin o agressor, a NATO não andou a ocupar países como num jogo do Risco. Porém e ao mesmo tempo é impossível não nos indignarmos com a imoralidade da posição europeia face aos refugiados ucranianos, em comparação com as décadas de segregação face aos refugiados do Norte de África e dos países muçulmanos, anos e anos esbarrados nos muros xenófobos das fronteiras da união. Compreender a necessidade e justificação da lei marcial na Ucrânia, um país sob uma agressão bárbara de uma potência vizinha, se bem que inimiga, é, ou devia ser, o mesmo racional que nos devia levar a condenar a imposição injustificável e condenável da censura europeia aos canais de televisão russos. Por uma razão substancial, a Ucrânia está em Guerra, a Europa não. Ser pela Liberdade não significa ser pacifista, da mesma forma que ser pacifista não nos impede de entender o direito de pegar em armas e exercer a guerra contra os discípulos do mal. A questão é compreender quando é o tempo da palavra e quando é o tempo da acção.
A Bíblia, mais uma vez e como toda a grande literatura, esclarece com cristalina clarividência: “Para tudo há uma ocasião certa; / há um tempo certo para cada propósito / debaixo do céu: / Tempo de nascer e tempo de morrer, / tempo de plantar / e tempo de arrancar o que se plantou, / tempo de matar e tempo de curar, / tempo de derrubar e tempo de construir, / tempo de chorar e tempo de rir, / tempo de prantear e tempo de dançar, / tempo de espalhar pedras / e tempo de ajuntá-las, / tempo de abraçar e tempo de se conter, / tempo de procurar e tempo de desistir, / tempo de guardar / e tempo de jogar fora, / tempo de rasgar e tempo de costurar,/ tempo de calar e tempo de falar, / tempo de amar e tempo de odiar, / tempo de lutar e / tempo de viver em paz.” Ecclesiastes.
Antonio Tabucchi, que se viu envolvido numa enorme polémica em Itália com o presidente do senado italiano Renato Schifani, um discípulo de Berlusconi, escreveu que a democracia não é perfeita, a democracia é um permanente estado de aperfeiçoamento e vigilância. E é essa vigilância, diria eu, que nos separa da barbarie e nos defende da cavalaria da Guerra. É essa vigilância que temos que exercer permanentemente, compreendendo as matizes do tempo a cada decisão. Argumentar-se-á, como questionou o poeta Juvenal, quem nos defende dos vigilantes? Somos nós, que em cada dia exercemos, em defesa da moral, essa constante vigilância.
Defender uma postura intransigente contra a invasão de Putin e uma intervenção robusta do Ocidente em defesa da Ucrânia é, ao mesmo tempo, impedir uma militarização das nossas democracias e a captura das nossas liberdades pela ganância animal do capitalismo militar, na mesma medida, do capitalismo farmacêutico no “combate” ao bicho. É, ao final do dia, reconquistar o Se de Rudyard Kipling…
If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you,
But make allowance for their doubting too;
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don’t deal in lies,
Or being hated, don’t give way to hating,
And yet don’t look too good, nor talk too wise:
If you can dream—and not make dreams your master;
If you can think—and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you’ve spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build ’em up with worn-out tools:
If you can make one heap of all your winnings
And risk it on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breathe a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: ‘Hold on!’
If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with Kings—nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you,
If all men count with you, but none too much;
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds’ worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that’s in it,
And—which is more—you’ll be a Man, my son!
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Ana Monteiro and 4 others
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