quando se era preso por crime de amor

PRESA NUM MANICÓMIO POR UM «CRIME DE AMOR»
Corria o ano de 1918 quando um escândalo protagonizado pela filha e herdeira do fundador do Diário de Notícias, Maria Adelaide Coelho da Cunha, veio agitar o país habitualmente sereno e muitíssimo conservador em matéria de costumes.
Resumidamente, a história reza assim: casada (com o administrador do mesmo jornal, o advogado e escritor Alfredo da Cunha), senhora de uma educação privilegiada, com uma fortuna considerável, Maria Adelaide, com 48 anos de idade, apaixonou-se pelo seu motorista particular, de 26. Por amor, decidida a abdicar de uma vida abastada e mundana e de um casamento aparentemente considerado exemplar, um modelo de harmonia e felicidade, que, no entanto, a tornava profundamente infeliz, Maria Adelaide abandonaria a sua residência, o palácio de São Vicente, à Graça, para ir viver num primeiro andar alugado, modestíssimo, em Santa Comba Dão.
O marido traído e ávido de vingança, com o auxílio das autoridades, iniciou uma caça policial que acabaria na captura da mulher e do seu amante. Enquanto ele, Manuel Cardoso Claro, foi encarcerado na Cadeia da Relação do Porto onde permaneceria durante quatro anos sem culpa formada, ela, a esposa adultera, seria interditada judicialmente de gerir os seus bens e internada no Hospital de Alienados do Conde Ferreira, no Porto.
Observada pelos médicos (três famosos vultos da psiquiatria portuguesa da altura: Sobral Cid, Júlio de Matos e o que seria o futuro Prémio Nobel de Medicina, Egas Moniz) o diagnóstico foi preciso: Maria Adelaide sofria de uma forma de alienação mental. Os clínicos usam termos muito habituais na época, como «degenerescência hereditária», «neurastenia» e «loucura lúcida», para justificar os motivos que a teriam levado a alterar tão radicalmente a sua conduta e a apaixonar-se por um jovem, ignorando a sua condição social inferior.
Durante todo o tempo de internamento, Adelaide, não só era vigiada vinte e quatro horas por dia, como passou a ver toda a sua correspondência intercetada e só podia ser visitada por quem estivesse autorizado pelo marido para o fazer.
Como nunca recebeu qualquer medicação ou tratamento específico para a suposta doença mental de que padecia, permanece a dúvida se se terá tratado de um (terrível) erro médico cometido pelos reputados clínicos, se tudo não terá passado de um benefício em troca de favores ou pagamento, ou até, talvez, de um «processo moral» em nome dos bons costumes e do poder patriarcal masculino.
Embora este não constitua um caso isolado, já que a História nos fornece outros exemplos de individualidades, sobretudo do sexo feminino, que, por porem em causa as normas sociais e, muito em particular, a estabilidade familiar, o poder marital ou paternal, eram diagnosticados como doentes mentais e privados dos mais elementares direitos, nomeadamente, o encarceramento, o internamento compulsivo, a exclusão social, ele teve maior repercussão histórica pelo facto dos dois protagonistas nele envolvidos fazerem parte não só da alta burguesia lisboeta, como pertencerem a uma das mais conhecidas famílias ligadas à imprensa portuguesa. Acresce ainda o facto de tanto Maria Adelaide como o marido terem saltado à praça pública, com grande exposição mediática, escrevendo artigos de jornal e livros onde defendiam as suas posições: «Infelizmente louca!» intitulou-se o libelo de Alfredo da Cunha e «Doida não!» a contestação dela.
Deliberadamente não quero aqui desvendar o desfecho deste drama que apaixonou a sociedade lisboeta do tempo e inspirou diversas obras, entre as quais “Doidos e Amantes” de Agustina Bessa-Luís, “Doida Não e Não!” de Manuela Gonzaga, o filme “Solo de Violino”, realizado pela franco-portuguesa Monique Rutler ou o filme “Ordem moral”, de Mário Barroso.
Deixo à vossa consideração qualquer uma destas quatro sugestões…
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