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Não me calarei com este assunto

UM ESTADO DE BEM NÃO FAZ O MAL (PARTE VII)
Um homem morreu. Morreu, não vive mais, nunca mais abraçará mulher e filhos, nem sentirá da vida o privilégio.
Outro homem, numa confortável posição de poder pode, ou não, ter sido responsável pela morte desse homem.
Acontece tantas vezes. Acontece às vezes.
Sentava-se no banco de trás de um automóvel, o carro seguia a uma velocidade que ainda ninguém, salvo talvez o motorista, e o próprio homem no banco de trás e talvez os investigadores, e provavelmente já os técnicos da marca que examinaram a centralina do veículo e determinaram a velocidade a que ele seguia e se seguia a uma velocidade que impedisse o motorista de se aperceber que um homem estava no separador central da via prestes a atravessá-la, ou, quiçá, já a atravessá-la, e nesse caso teria tempo para
travar, desviar-se, apitar,
sei lá, não sei, não estava no banco de trás do automóvel, se estivesse teria talvez dito ao motorista, do alto (de trás) da minha posição de poder, sei lá, talvez, “abrande isso homem, vá mais devagar” e os, não sei, 200, 210, 220 km hora, ter-se-iam reduzido a 150, 140, 120
e o motorista teria tido tempo para
apitar, desviar-se, travar.
Eu não sei nada, sei apenas que não me calarei enquanto não souber.
E agora, a polícia que investiga, e em quem manda o homem que ia no banco de trás do automóvel, investiga coisas estranhas à procura de justificações que façam do morto o culpado e ilibem de vez o homem sentado no banco de trás do carro.
E afinal seria tão fácil – bastava dizerem-nos a que velocidade seguia o veículo.
Então, eu calar-me-ia. E o silêncio obrigado do homem morto confundir-se-ia com o meu resignado silêncio, apaziguada a indignação e a vergonha, e a vida, como sempre, seguiria, e do céu, do meu céu que é justo e justiceiro, não chegariam mais injunções a mandar-me prosseguir.
Já vai sendo tempo para um átimo de dignidade.
Ou não, não sei, talvez seja uma esperança vã, um sopro de ilusão.
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