Views: 0
de chronicaçores uma circum-navegação vol 1 se retira
Array
34.2. PORTUGUESES NA BIRMÂNIA dezembro 2006
E da Abissínia vamos à Birmânia ou Myanmar onde os Portugueses também andaram (facto igualmente esquecido hoje)
… O nosso Fernão Mendes Pinto voltou para Malaca, onde estava o seu Capitão. E, ao serviço dele, começou uma nova aventura. Tantos caminhos fez, tantas guerras viu e tantos países, que é impossível contá-lo. O seu Capitão enviara-o à cidade do Martavão no golfo de Bengala. Ali foi aprisionado e feito escravo com os seus companheiros por um general do rei da Birmânia. Subindo o Ganges e o Bramaputra acompanharam este general até à capital do Calaminhão (Tibete?), observando as suas extraordinárias práticas religiosas.
Sucedem-se batalhas, os cercos, as marchas de exércitos em que os soldados se contam às centenas de milhar, as revoltas, as traições, os suplícios, no país devastado pela Guerra. Até que um dia, aproveitando a confusão de uma batalha, os nossos Portugueses escapam-se. E, descendo numa jangada os rios que correm para o golfo de Bengala, puderam encontrar transporte para Goa.
As armas, as especiarias, a cruz e o amor são fatores importantes para a fixação do homem luso no Oriente.
Assimilou-se a outras etnias com facilidade. Não abandonou os filhos que as mulheres lhe deram, com quem casaram debaixo dos preceitos da Igreja Católica. Formaram comunidades lusodescendentes, que ainda estão vivas, em Malaca e Singapura, adaptaram-se ao meio que os acolheu. Foram amados pela magia da submissa mulher oriental.
José Gomes Martins escrevia recentemente:
O homem português na Ásia nunca esqueceu a pátria que os viu nascer. O berço que lhes tinha sido madrasto, aliás o tinha sido para os portugueses quinhentistas. Pela ironia do destino a migração continuou por séculos, mas fica-lhe para sempre na mente e no coração o amor pátrio. Transmitiu o seu Portugal à família constituída. Estivesse no sudeste asiático ou no Japão. Podemos tomar o exemplo de Venceslau Morais, no seu exílio nipónico que embora tivesse escrito e enviado dezenas de cartas e postais ilustrados a Francisca Palu, para Nelas (Beira Alta), nunca referiu a Francisca a intenção de regressar a Portugal. A memória do Cônsul de Portugal em Kobe, no longínquo país do Sol Nascente, ficou para sempre nos anais das relações culturais entre Portugal e o Japão, depois da sua morte.
Fernão Mendes Pinto, quando regressou a Portugal, pobre como um Job, apelidado de mentiroso, quando apoquentado pela nostalgia do Oriente, no fim da sua vida, sentava-se na margem do Tejo, esperando as caravelas, de velas desfraldadas ao vento, com a Cruz de Cristo, para que as tripulações lhe transmitissem coisas do Oriente.
Pinto, o imaginário, “aldrabão” na mentalidade dos portugueses da época e acossado pela “gadanha” da censura, demolidora, da Santa Inquisição, reportou as realidades do Oriente como nenhum português, até hoje, as escreveu na sua Obra, em dois volumes a “Peregrinação”.
Os portugueses chegados ao sudeste asiático, não fugiram à regra da época. São humildes, ordeiros, fiéis aos Reis que servem, como soldados mercenários, fossem estes do Sião ou do Pegú (Birmânia). Lutaram homens lusos, irmãos de sangue, em campos adversos, embrenhados na poeira provocada pelas patas, as bestas de guerra, dos elefantes. Milhares envolvidos como se fossem tanques nas guerras contemporâneas… Os gemidos desses portugueses, feridos na peleja, encontraram o apoio moral e espiritual do irmão, inimigo, no campo de batalha em Lampang.
Passados 450 anos, da coragem dos soldados portugueses e talvez a única no mundo, o feito, ainda se encontra na memória dos lampanguenses. A seiscentos quilómetros de Banguecoque, os canhões portugueses, estão expostos num jardim público na cidade de Lampang, no norte da Tailândia, num fortim, no Templo Budista, “Prakaew Dao Tao”.
No museu, do mesmo templo, estão duas armas ligeiras da grande peleja… O templo, para a sua melhor defesa, foi murado e no cimo destes foram montadas as tradicionais e bem conhecidas ameias portuguesas que trazidas para o Banguecoque moderno, foram imortalizadas no Grand Palace, na Montanha Dourada, e em outros sítios que ficam para sempre: Monumentos de Portugal na Tailândia. ©José Gomes Martins
Miguel Castelo Branco escrevia:
Ora, se na evangelização portuguesa houve, não o duvidemos, uma forte componente joaquimita – milenarista e redentorista, bem presente na visão de D. Manuel I – tal permitiu, sem paradoxo, desvelar a unidade da humanidade na multiplicidade dos povos, crenças, substratos culturais e linguísticos. Os outros, calvinistas e puritanos, exclusivistas e sem anelo predicador, ativeram-se ao trato comercial antes de lançarem os caminhos-de-ferro e o telégrafo.
Se das colonizações britânica e holandesa nasceram estados, da colonização portuguesa nasceram comunidades de afeto. Não se trata de um mero topos, este de enfatizar o caráter distintivo das relações portuguesas com a Ásia do Sul ou subcontinente indiano; as Índias Orientais e o sudeste asiático; o Extremo-Oriente. Em primeiro lugar, posto não existir correspondência direta entre o “Estado Português da Índia” e a presença portuguesa, poderemos falar de uma presença multimodal, fluida, quase informal, tão diferente daquela praticada pelas companhias dos povos comerciantes. Tivemos o cartaz, praticamos o monopólio, tentando destruir a concorrência. Tudo isso é claro, mas estávamos em todo o tablado pois contávamos com fidelidades regionais que extravasavam largamente o interesse diplomático, comercial e político da Coroa.
A língua portuguesa era língua franca, “portugueses” eram todos os que professassem a fé católica, amigos e aliados todos os que aceitassem, enriquecendo, um quinhão nessa comunidade continental de comércio, favores, acolhimento e proteção.
As “lusotopias” não eram da Coroa: eram das comunidades que se formavam, cresciam e prosperavam na liberdade dos concelhos, na unidade religiosa das igrejas e na entreajuda das Misericórdias. Estas lusotopias resistiram aos ventos e tempestades da história. Teimosamente, mantiveram a língua, os costumes, a memória da linhagem: na Birmânia, no Sião, na Malásia, na Indonésia há populações que orgulhosamente afivelam o nome de Portugal. Os outros passaram. Nós ficámos, estamos lá, sem subsídios, sem apoios e sem estímulo do Portugal distante, abúlico e “europeu”, um Portugal que regrediu para uma visão tardo-medieval da esfera de contactos internacionais: a Antuérpia e Bruxelas, a costa da Guiné e pouco mais.
Disse há tempos o Professor António Vasconcelos Saldanha que Portugal é, para os asiáticos, uma “potência histórica”, com tal luminosa expressão pretendendo definir o peso e permanência do nome de Portugal na diversidade de sentidos que apontámos. Querem hoje fazer crer aos portugueses jamais terem estado na Ásia, ou, pior, fazer crer que a “Ásia Portuguesa” se limita a Goa, Macau e Timor. Tamanho disparate tem criado atritos diplomáticos e reduzido ao limite da caricatura a verdadeira expressão da presença portuguesa nas Ásias. Felizmente, a “Ásia Portuguesa” está bem para além das Portas do Cerco, do bazar de Díli e dos ananizados limites de Goa. Pede-se hoje, no limiar de um séc. que será o séc. chinês, que os decisores de Lisboa abram os olhos e consigam tirar partido dessa imensa vantagem que foi, é e será se o quisermos, a grandeza do nome de Portugal em terras da Ásia. © Miguel Castelo Branco
http://www.alamedadigital.com.pt/n1/portugueses_oriente.php
Carlos Fontes escreveu:
Em 1511 a cidade de Malaca era um centro económico transbordante de riqueza do sudeste asiático. O Sultão que a governava foi mandado para o exílio depois de Albuquerque a conquistar facilmente. O talentoso e ilustre diplomata, sonha e quer chamar à realidade a fundação do vasto império português na Ásia. Conquista Ormuz, junto ao estreito que liga o Oceano Indico com o Golfo Pérsico, em 1507 e, definitivamente, Goa em 1510.
O Mar Vermelho, nas costas da Arábia e Norte de África, já está na posse da navegação portuguesa o controlo marítimo em direção ao Mediterrâneo. As embarcações do Império Otomano que transportavam a mercadoria de Malaca pelo Golfo Pérsico e Mar Vermelho, depois de vários embates nessas águas com os navegantes lusos, já não assustam Afonso de Albuquerque.
Pretende ir mais além: o senhorio absoluto do comércio da Costa do Coramandel, na Baía de Bengala, Reino do Pegú (Birmânia), Malaca, Samatra e Reino do Sião. No pensamento do grande português, estavam noutras terras no sul dos mares da China estendendo-se até ao Japão. Outros portugueses, depois lhe seguiram a linha do seu pensamento e obviamente animados pela coragem e inspirados pelos feitos anos não muito distantes.
Albuquerque não é apenas um guerreiro indomável. É um diplomata, negociador, inteligente que prefere tratar dos assuntos pacificamente que o servir-se das armas. Não pretende conquistar países, deseja sim, apoderar-se dos grandes pontos estratégicos de permutas e comércio onde todos: “gregos e troianos” vivam na melhor das harmonias. De forma alguma que perder embarcações e homens em lutas desnecessárias. Fazem-lhe falta, para a concretização do seu objetivo – a administração do empório de Malaca.
À península malaia chegam os têxteis da Índia, sedas e cerâmicas da China, cravo das Molucas, noz-moscada de Banda, papel de arroz de Samatra, cânfora do Brunei, madeira de Sândalo de Timor, pau-santo, benjoim, chifres de Rinoceronte, marfim, pérolas, carpetes, adagas, batiques de Java. Os mercadores árabes do Cairo, Meca, Adén, Ormuz e da África Oriental, chegavam a Malaca com as embarcações carregadas de armas, tapeçarias, talheres de cobre, ópio, água de rosas, estoraques e incenso. Corante azul da costa oriental da Índia (Coramandel). Juncos chineses aportavam a Malaca com seda em bruto para manufaturar em vestidos brocados em relevo, drogas aromáticas, coralina e marfim.
Do reino do Sião aportam, todos os anos, 30 barcos com carregamentos de laca, madeira de teca, pedras preciosas, roupas rudimentares siamesas, pimenta, metais diversos que permutam por escravos ou por mercadorias que não produziam. Da Birmânia arroz, diversos produtos agrícolas, rubis, estanho e prata. De Palembanque em Samatra, escravos, produtos da floresta, entre eles as ervas medicinais e produtos alimentares conservados.
A presença portuguesa foi particularmente forte nesta região nos séc. XVI e XVII, sobretudo em Pegú. Entre as grandes feitorias que os portugueses tiveram na região, destaca-se a de Serião (1599-1613). Muitas palavras birmanesas são de origem portuguesa: Lelain – Leilão; Tauliya – Toalha; Natatu – Natal; Balon – Bola, Balão, Waranta – Varanda, etc.
In Carlos Fontes http://lusotopia.no.sapo.pt/indexOP.html
Um interessante guia para a Birmânia (além do sempre útil Lonely Planet Myanmar – Burma, edição de 2005), e do Guide du Routard, foi o essencial Further India de Hugh Clifford (edição White Lotus Co., Banguecoque 1990, 378 páginas). Publicado pela primeira vez em 1904, o autor, acérrimo defensor do sistema colonial britânico, descreve de um modo isento para a época, a epopeia do desbravamento destes territórios por parte dos ocidentais, desde a chegada dos árabes, dos primeiros conquistadores portugueses como Albuquerque e outros (the Filibusters), dos primeiros exploradores com nomes totalmente desconhecidos para a maioria dos portugueses, nomes como os de António de Faria, António de Miranda, Duarte Fernandes, Ruy de Araújo, Francisco Serrano, António de Abreu, Pedro Afonso de Loroso, e o conhecido Fernão Mendes Pinto, dos grandes exploradores franceses como Mouhot e o famoso Francis Garnier a quem se atribui erradamente a descoberta dos templos de Angkor Vat, dos holandeses e finalmente dos inúmeros ingleses.
O termo de flibusteiros aplicado aos primeiros exploradores portugueses, tem a sua razão de ser pelo facto de serem, de todos os povos que exploraram o sueste asiático, os portugueses os únicos que construíram fortes, impuseram a sua religião, e comercializaram pela força. Até à chegada dos portugueses, eram os árabes os únicos cuja influência se alastrava até ao oriente, e estes tinham como princípio nunca se imiscuir na política local. O sucesso dos holandeses e ingleses que vieram depois deveu-se simplesmente ao facto de só quererem o comércio, nunca as terras nem as almas das gentes. A colonização veio depois… Essa perspetiva é nova, para aqueles que nasceram e cresceram no mundo paroquial da epopeia quinhentista da História de Portugal do Adolfo Simões Müller. Muitos sentem-se ainda hoje afrontados ao lerem opiniões sobre Vasco da Gama diferentes das que o ensino oficial durante a Ditadura inculcou nos jovens portugueses.
Como acontece com a Birmânia, também a religião predominante e o alfabeto tailandês (embora a religião seja a mesma, os dois alfabetos são distintos, embora de inspiração comum) servem de prova de que houve uma influência cultural indiana forte durante o primeiro milénio, embora os primeiros relatos históricos só comecem no séc. X. Tal como os magiares na Hungria vão buscar as suas origens às estepes asiáticas, também o santuário original dos Thais fica na China, na província de Iunão, de onde eles se começaram a deslocar lentamente para sul entre os séculos X e XII desalojando e pressionando o reino da civilização khmer para sudeste e para o atual Camboja.
No séc. XIII surgem os primeiros principados importantes e em 1350 o príncipe que funda uma capital central em Ayuthia (a fazer lembrar o exemplo moscovita por essa mesma altura) acaba por ganhar a supremacia num território que, pela configuração, representa o embrião da atual Tailândia, embora naquela altura se chamasse Sião. Tornou-se um reino com um elevado grau de sofisticação, como os portugueses vieram a descobrir quando se tornaram sua potência vizinha, ao conquistarem Malaca em 1511, altura em que o Sião esteve envolvido numa luta épica com os birmaneses que venceriam nos finais do séc. XVI. Do contacto ficou a norma, que perdurou por mais de 300 anos, da corte siamesa empregar o português como idioma diplomático, para desconcerto do embaixador norte-americano que ali apresentou credenciais no séc. XIX. Mas a infiltração europeia acabou por ser bloqueada com a expulsão de todos os comerciantes europeus da capital e o fecho das feitorias em 1688.
Os conflitos entre tailandeses e birmaneses reacenderam-se no séc. XVIII, com vantagem para os segundos que conquistaram e destruíram a capital siamesa em 1767. Mas o estado veio a recompor-se em 1782 na pessoa de um general que se veio a coroar (é o fundador da dinastia atual) e que fundou Banguecoque, a nova e atual capital da Tailândia, a pouca distância da anterior. Expulsos os birmaneses para Oeste e dada a fraqueza progressiva dos Khmers, o Sião acabou por descobrir um novo inimigo histórico nos vietnamitas com quem houve alguns choques durante a primeira metade do séc. XIX. No entanto a área de influência siamesa teve de recuar substancialmente com a chegada dos franceses à Indochina (1859), com as suas fronteiras orientais a só ficarem definidas em 1910.
No ano de 849 d. C. os habitantes que chegaram aquelas terras criaram um reino cuja capital era Pagan agora denominada Bagan. Este reino, liderado por Anawrahta atacou a cidade Mon de Thaton em 1057. Aquilo que é hoje o território de Myanmar está unificado desde os tempos do reinado de Pagan. Em 1277 o último verdadeiro governante do reino, Narathihapate, sentiu-se suficientemente forte para atacar os mongóis na batalha de Ngasaunggyan, mas acabou por ser derrotado e o reino acabaria por se desintegrar no reinado do seu filho na batalha de Pagan em 1287 ficando a ser administrado por um governado mongol.
O que fora o reino de Pagan desmembrou-se e estabeleceu-se a dinastia Ava na cidade do mesmo nome em 1364 tendo ressuscitado grande parte da cultura de Pagan. Mantiveram-se, porém, os confrontos com outras dinastias como as Ming ou do Sião. Em 1527, os povos Shan destruíram a dinastia Ava, não obstante as suas fronteiras fossem fáceis de defender. Os povos Mon que sobreviveram estabeleceram-se em Martaban e depois em Pegú. Durante o reinado de Rajadhirat (1383-1421) os Pegú estiveram em guerra constante com os Ava. A Rainha de Pegú, Baña Thau (1453-1472) levou o seu povo a uma paz duradoura e nomeou como seu sucessor, o monge budista Dhammazedi (1472-92) que converteu as suas gentes ao Budismo Theravada. A governação deste monge seria a última do povo Pegú.
Pouco antes do desaparecimento da dinastia Ava, o rei Mingyinyo fundou a dinastia Toungoo (1486-1599) na cidade do mesmo nome. Com o desaparecimento dos Ava os seus habitantes mudam-se para Toungoo e fazendo desta dinastia uma sucessora dos Ava. O seu herdeiro, Tabinshwehti (1530-1550) viu como Ayutthaya se tornava num importante reino numa área que mais tarde se tornaria no Sião. Os europeus tinham, entretanto, chegado transformando esta região num importante centro comercial.
Tabinshwehti reunificou o que agora é Myanmar e o seu cunhado Bayinnaung (1551-81) conseguiria grandes conquistas, incluindo todo Ayutthaya, mas as rebeliões e as incursões portuguesas levariam a que a dinastia, agora sediada em Pegú se movesse para o norte e fundasse uma segunda dinastia Ava ou Dinastia Restaurada Toungoo (1597-1752), cujo expoente máximo foi o reunificador neto de Bayinnaung, Anaukpetlun, em 1613. Foi este que infligiu uma pesada derrota aos portugueses evitando os seus avanços em Myanmar.
O fim desta dinastia, chegou em 1752, após várias rebeliões dos Pegú. Estes seriam, por sua vez, expulsos em 1753 na dinastia Konbaung formada por birmanes (aparentados com os Ava), reconquistando enormes territórios e aniquilando os Mon enquanto repeliam os Chineses. Em 1824 o rei Bagyidaw conquistou Assam assim despertando a inimizade dos hindus e dos britânicos, que após várias guerras proclamavam um Protetorado Britânico em 1886 com capital em Rangum.
Voltemos ao tema da presença portuguesa. Jorge Morbey escreveu ao então Presidente Jorge Sampaio de Portugal uma longa missiva da qual extraio alguns excertos:
Jorge Morbey
Como referiu o Arcebispo Emérito de Mandalay, na Birmânia, U Than Aung – descendente de portugueses – onde a maioria do clero católico é de origem portuguesa e cuja Comunidade tem as suas origens na cidade de Pegú no ano de 1600, quem nunca recebeu a mais ténue manifestação de solidariedade de Portugal nada tem a esperar daí.
Na verdade, o que poderão as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente esperar de Portugal? O poder colonial inglês não descolonizou as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, no sentido de restituir dignidade à sua identidade, de que a língua crioula faz parte integrante, o que, aliás, não era de esperar.
Nem é de esperar que os poderes pós-coloniais de moto próprio venham a dedicar-lhes a atenção a que têm direito. A incapacidade de Portugal nesta matéria tem sido uma evidência secular, filha da ignorância e do preconceito.
A pequena Cristandade Crioula Lusófona de Korlai [junto a Chaúl], na Índia, somente em 1982 seria revelada ao Mundo pelo etnólogo romeno Laurentiu Theban. O seu crioulo é designado por Kristi.
A Cristandade Crioula Lusófona da Birmânia – Myanmar atualmente – já não usa a língua crioula e, ao contrário das demais, perdeu com o tempo os próprios nomes e apelidos cristãos, apesar de permanecer fiel à religião católica.
As Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente – gente simples e temente a Deus – mantidas na ignorância dos conflitos entre Portugal e a Santa Sé, lutaram anos sem fim contra as novas autoridades eclesiásticas com quem conflituavam abertamente e às quais consideravam estrangeiras.
Durante décadas pagaram o elevado preço de lhes serem recusados os sacramentos a que só esporadicamente tinham acesso quando aportava um navio com um sacerdote, ainda que espanhol. Clamaram sempre pelo envio de clero. De Portugal, de Goa ou de Macau. Em vão.
A firme identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente, ainda hoje, evita o casamento dos seus membros com indivíduos exteriores a elas e prefere que os futuros cônjuges provenham do seu seio ou de outras cristandades, ainda que distantes. Quando assim não acontece e o casamento une um membro da Comunidade a alguém que a ela não pertence, a regra é a conversão deste à religião católica e a aprendizagem da língua crioula.
Algumas dessas comunidades desfrutam de um status social positivo nos países onde vivem. Outras, porém, são socialmente desqualificadas e os seus membros são depreciativamente designados por “negros”, apesar da sua cor mais clara – da pele, do cabelo e dos olhos – relativamente aos naturais com outras origens étnicas.
A nível individual, nos países onde vivem, podem encontrar-se membros originários destas comunidades nos mais elevados estratos da sociedade: do mundo da política à atividade empresarial próspera, nas mais elevadas funções da hierarquia eclesiástica ou simples párocos de aldeia. Onde se verifique a existência de uma significativa percentagem de membros destas comunidades no clero católico, isso parece resultar da intensa discriminação de que são objeto no acesso ao ensino público e ao mercado de trabalho – público e privado. Em geral, dedicam-se a atividades modestas. São pequenos proprietários, simples trabalhadores agrícolas ou pescadores.
A abertura dos mares à navegação de outros países europeus, além de Portugal e de Espanha, foi o resultado da perda do exercício do poder central europeu pela autoridade pontifícia – que vigorava desde a queda do Império Romano – por ação da Reforma iniciada com Martim Lutero. A transferência de domínios entre países europeus – de Portugal católico para a Holanda protestante, principalmente – constituiu o pano de fundo em que emergiram as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente.
Com a substituição da dominação portuguesa pela holandesa, permanecendo nas terras que as viram nascer, deportadas para outras paragens, ou forçadas à emigração, essas comunidades mestiças talharam a sua identidade própria que perdurou até aos nossos dias, assente em dois pilares principais: a religião católica e a língua crioula. A religião católica fora trazida pelos portugueses, diretamente de Portugal ou através de Goa – a Roma do Oriente. Convertidos ou nascidos nela, com ela haveriam de morrer, geração após geração.
A sua língua – o crioulo – era a língua portuguesa na formulação que lhe garantira o estatuto de língua franca no litoral da Ásia e da Oceânia, desde o séc. XVI até à sua substituição pelo inglês, no séc. XIX.
Holandeses, ingleses, dinamarqueses e franceses não podiam prescindir de um “língoa” [intérprete] a bordo para poderem comerciar nos portos do Oriente, na língua que era – nada mais, nada menos – aquela que as Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente falavam e, muitas delas, ainda falam. Tratados, entre esses países europeus e poderes locais, foram firmados nessa mesma língua, por ser a única a que os europeus podiam recorrer para comunicar no Oriente, ainda que contra os interesses portugueses.
Ainda hoje, em muitas partes deste lado do Mundo, “Cristão” [Kristang] e “Português” [Portugis] são sinónimos.
A forte identidade das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente cimentou-se em grande parte na adversidade. O conflito religioso nascido na Europa, entre católicos e protestantes, ramificou-se por todas as paragens do Oriente onde o poderio holandês se firmou. A profanação e a destruição de igrejas e mosteiros, a expulsão dos padres, a proibição de qualquer ato de culto católico, as deportações maciças, a redução de muitos à condição de escravos, compeliram os membros dessas cristandades à clandestinidade e à emigração: Macau, Índia, Insulíndia, Sião e Indochina foram os seus destinos principais.
Os que teimavam em ficar escondidos em suas casas ou refugiados nas florestas, celebravam como podiam os atos de culto da religião católica. Sem padres e sem igrejas, organizaram-se em irmandades clandestinas que, ao fim de décadas, produziram fenómenos de cristalização cultural, de natureza religiosa e linguística, que impediriam, por séculos, a sua plena integração nas paróquias criadas posteriormente. Tais irmandades permaneceram até aos nossos dias e conservam determinadas prerrogativas que limitam a autoridade dos párocos, o que é visível em algumas celebrações onde os sacerdotes se limitam à Eucaristia e à Confissão dos fiéis porque, em tudo o mais, quem manda é a Irmandade.
À medida que a dominação holandesa foi sendo substituída pela inglesa, as Comunidades Crioulas Lusófonas do Oriente foram ficando menos oprimidas e, em alguns casos, foram as próprias autoridades coloniais britânicas a tomar a iniciativa de lhes facultar padres portugueses.
Perdida a confiança que a Santa Sé depositara desde o séc. XV em Sua Majestade Fidelíssima o Rei de Portugal, na sequência do corte de relações diplomáticas por iniciativa do Governo liberal em 1833 e a extinção das ordens religiosas por decreto de 31 de maio de 1834, o Padroado Português do Oriente sofreu um golpe mortal, na Índia, no Ceilão – hoje Sri-Lanka -, no sudeste asiático, na China e na Oceânia.
Permanecendo – os que podiam – nas suas missões, os missionários religiosos do Padroado não seriam substituídos pelos seus confrades. O clero secular de Goa, numeroso e bem preparado, acorria em socorro das Cristandades Crioulas Lusófonas do Oriente que iam ficando sem religiosos. Quase sempre em vão. Os missionários da Propaganda Fidae e das Missions Étrangères de Paris já as ocupavam e os respetivos vigários apostólicos impediam-lhes o exercício do seu múnus. A expansão missionária francesa no Oriente começara ainda no séc. XVII.
Mas a língua crioula falou-se também nas Cristandades Crioulas Lusófonas da Tailândia – Ayutia ou Ayutthaya e, posteriormente, Banguecoque – até aos anos 50 do séc. XX, onde permanecem vocábulos de uso corrente no relacionamento familiar e nas práticas da religião católica.
Na Indonésia, além de Java, na ilha das Flores [Larantuka e Sikka], nas ilhas de Ternate e Tidore e em Bali.
Em Timor [Lifau e Bidau].
No Bangladeche – Chittagong e Daca – até aos anos 20 do séc. XX era muito viva a presença da língua crioula nas Cristandades locais. Em Daca existe ainda vocabulário crioulo entre os católicos locais.
© Jorge Morbey
Por isso tudo o que atrás ficou dito recordo um grande universalista português. No último canto de “Os Lusíadas”, o décimo, o grande épico da língua portuguesa, Vasco da Gama, o almirante herói, é recebido pela deusa Tétis na Ilha dos Amores. Lá, naquele espaço encantado, ela descortinou a Máquina do Mundo, a visão do Cosmo e dos continentes da terra recém-descoberta pelos feitos dos lusos, cena que coloca o poeta português como quem por primeiro, no campo das letras europeias, percebeu os efeitos irreversíveis da globalização que então dava os seus primeiros passos.
“Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Quem é sem princípio e mete limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende”
(Canto X, 80)
“É então que a deusa, abrindo os braços para enfatizar a amplidão de tudo aquilo, a magnitude do reino augusto, aponta ao Gama as mais diversas regiões do mundo. Povoam-na “gente sem lei”, a bruta multidão, “bando espesso e negro de estorninhos”, do império do Benomotapa (Zimbabwe) à Taprobana (Sri-Lanka)”. Todos eles estão à espera da chegada da cruz, desenhada na vela principal da nau dos argonautas lusitanos. Mostra-lhe então o Mar Vermelho, o Monte Sinai, a secura dura e arenosa da Arábia, o Rio Tigre o Eufrates, o planalto dos cavaleiros da Pérsia, o estreito de Ormuz, o Sind, a terra dos Brâmanes onde São Tomé tentara a conversão dos gentios, o Rio Ganges e o Indo, a terra da Birmânia, o império do Sião, a Ilha de Sumatra, a ponta estreita de Singapura, o Camboja e o rio Mekong (no qual Camões naufragou, mas salvou os versos). Em seguida, margeando com os olhos a costa da Cochinchina (o Vietname de hoje), mostrou-lhe a China e mais longe ainda o Japão, regiões de onde vinha a maravilhosa seda e o ouro fino. De tudo aquilo desprendiam-se o aroma do cravo, da noz-moscada, do licor perfumado do benjoim, do coco do mar, do incenso da mirra e do precioso âmbar, de onde se extraem fragrâncias mil.
Tétis, então, voltando-se para o outro lado da Terra, apontou-lhe para as partes recentemente conquistadas pelos castelhanos, que lançaram o seu rude colar sobre as gentes cativas do Novo Mundo. Enquanto isso, da Terra de Santa Cruz, do litoral do Brasil, o braço lusitano já carregava o tronco vermelho, o Ibirapitanga dos nativos, para dele extrair as tintas para os panos de todos. Reembarcados os portugueses, partindo da Ilha dos Amores, aos adeuses no convés, velas soltas ao vento em mar tranquilo, manso, carregados de refrescos e iguarias deliciosas, navegaram então de volta à boca do Rio Tejo. Todos eles de agora em diante estavam convencidos de que os fados da Humanidade, desde que Vasco da Gama unira o Ocidente ao Oriente, não se prendiam mais a um só reino, a uma só nação ou sequer a um só hemisfério.
Somente gente surda e endurecida, de testa fechada, teimosa, não reconheceria que, escancarado para sempre o Caminho das Índias, o mundo se globalizaria cada vez mais, tornando-se algo único, entrelaçado para sempre povos e continentes num destino em comum. Ainda hoje estou rodeado dessa gente surda e endurecida. Compilação e autoria de Chrys Chrystello para os textos não assinalados.