PORTUGAL ENTRE A SALSA E OS COENTROS

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Crónica de Miguel Esteves Cardoso, no jornal Público de 4 de Agosto de 2012.
É preciso descobrir a fronteira entre o Portugal da salsa e o Portugal dos coentros.
Por onde passa a linha que separa o uso dos coentros do uso da salsa?
É um dos maiores mistérios da paisagem em Portugal.
Não fui eu quem escreveu estas palavras deveras interessantes: foi Henrique Pereira dos Santos que, por generosidade dele e sorte minha, me escreve de vez em quando, nem sempre para me puxar as orelhas.
É obra ler, de graça e dirigidas a mim, palavras de um autor que costumo ler, gulosamente, nos livros dele.
Localizar esta misteriosa fronteira não é trabalho que se possa confiar a uma só pessoa.
Sonho com um mapa de Portugal em que haja, a norte, uma área coberta de folhinhas de salsa e, a sul, de folhinhas de coentros.
Algures pela cintura do país, com recorte irregular, estaria “a linha divisória” invocada pelo meu sábio e curioso correspondente.
É irrelevante e estraga-prazeres dizer que os coentros, tal como a salsa, se usam de norte a sul do país.
Em Lisboa, um ilustre comerciante de hortaliças – o Sr. Mendes do Centro Comercial do Lumiar, que oferecia, por respeitar uma tradição perdida, molhos formidáveis de coentros e de salsa que ele comprava a bom preço – ensinou-me o critério modernista de Lisboa, cidade fronteiriça:
“Quando não há salsa, usam-se coentros. Quando não há coentros, usa-se salsa”.
Esta atitude laxista indigna tanto o povo da salsa como o povo dos coentros.
Nesta modorra contemporânea em que vivemos, em que todas as ervas aromáticas são justamente celebradas, a questão tem de ser colocada de maneira diferente:
“Caso tivesse de escolher entre o desaparecimento, para sempre, da salsa e dos coentros, qual é que salvaria?”
Só a violência da escolha pode ajudar a determinar a fronteira.
Tenho de confessar, como lisboeta, que sobreviveria, muito mal, sem os coentros.
Mas que morreria sem a salsa.
A Maria João, filha de um alentejano e de uma lisboeta, passaria (não digo bem mas insinuo) sem salsa.
A salsa de folha talvez seja mais europeia.
A cozinha italiana não usa coentros.
A francesa só começou a usá-la há pouco tempo.
Os coentros são asiáticos, indianos e árabes.
Há quem lhes chame salsa chinesa ou árabe.
Mais alentejanos e algarvios.
Adivinhando uma fronteira, imagina-se que seja o Ribatejo – a província mais e menos portuguesa de Portugal.
Desde já solicito a ajuda dos leitores.
Qual é a povoação mais a sul em que os coentros são maioritariamente detestados?
Qual é a povoação mais a sul onde os coentros só se toleram numas amêijoas à Bulhão Pato?
Os coentros detestam-se mais facilmente.
Para ver até onde chega o fanatismo anticoentros, o site mais engraçado é o NoCilantro.com.
Zango-me com amigos meus que odeiam coentros – dizem que sabem a sabão -, mas a verdade é que há uma base química e cultural para a aversão.
O grande Harold McGee, autor da obra-prima On Food and Cooking, conta, num artigo de Abril de 2010 do New York Times, que facilmente se encontra na Internet, que a Julia Child uma vez disse ao Larry King que era incapaz de comer coentros e rúcula, “porque tinham um sabor a morto”.
Na literatura fundamentalista contra os coentros, os portugueses são sempre citados como os mais criminosamente comilões.
McGee assegura-nos que atiramos mão-cheias deles para as nossas sopas.
Quando eu era um pobre estudante na Inglaterra, a única maneira de recriar o sabor português era ir a um loja indiana comprar coentros frescos, misturá-los com alho (chinês…), pão velho (inglês…), azeite (grego…) e água a ferver, fingindo que estava a fazer uma sopa de açorda alentejana.
Às vezes enganava-me as saudades.
Voltemos ao que interessa: descobrir a fronteira coentresca.
Haverá, no Baixo Alentejo ou no Algarve, um aglomerado populacional que considera a salsa repugnante?
Será possível existirem em Portugal comunidades que fazem pastéis de bacalhau com coentros?
É urgente obter resposta a estas perguntas, antes que a fronteira se desvaneça.
Não é de excepções que estamos à procura (malta do Porto que adora pezinhos de coentrada) mas de velhos preconceitos enraizados.
Se é que eles ainda existem. Deus queira que sim.
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