Views: 0
548. queria ser toké 2012 LUCIANO
eu queria ser toké e contar o que vi
desde que parti em 1975
queria saber falar
dar os nomes os locais e os atos
de todas as atrocidades, violência e mortes
que testemunhei mudo na minha parede
eu queria ser toké e escrever tudo
queria contar o que não querem que se saiba
queria contar o que não queriam que se visse
queria contar os gritos que ninguém ouviu
queria ser água e apagar os fogos
que extinguiram a nossa história
como se não fora possível reconstruí-la
queria ser pássaro e levar nas asas
todos os que foram chacinados
violados, torturados e obnubilados
voar com as crianças que morreram de fome
as mulheres tornadas estéreis
tanta coisa que queria dar-te timor
e não posso senão escrever palavras
lembrar teu passado heroico
sonhar futuros ao teu lado
431. Díli, Timor, setº 1973 CHRYS
timor cresceu cercado
lendas que a distância empolgou
o sonho, a quietude,
as 1001 noites do oriente exótico
o sortilégio dos trópicos
para o europeu
desengano era a chegada
sobrevoa estéril ilha, montes e pedras
agreste paisagem sulcada de leitos secos
abruptas escarpas no subão
terra sem marca de homem
esparsas cabanas de colmo
será isto timor?
por trás de um monte imprevisto
o avião desce o vazio em círculos
em vão os olhos buscam a pista
e a imponente torre de controlo
que só existiu nos panfletos de propaganda
sob o zinco e o colmo
a alfândega é o bar e a sala de espera
isto é Baucau aeroporto internacional
a vila salazar dos compêndios que a história esqueceu
uma turba estranha se amontoa
à chegada do cacatua-bote[1]– ou patas-de-aço
esta a cerimónia sagrada
deus estrangeiro baixando dos céus
dia de festa para os trajes multicoloridos
o contraste castanho dos sóis pigmentados
cinco da matina e é já pó e calor
o espanto mudo nas bocas incrédulas
as formalidades têm aqui sabor novo
espera lenta e compassada,
séculos de futuro por viver
antes que ele venha,
antes não venha
num barracão zincado
a velha bedford de carga
caixa fechada,
vidros de plástico sob o toldo puído
pomposo dístico colonial
carreira pública baucau-dili
picada em terreno plano, mar ao fundo
Baucau, cidade menina por entre palmares
densa vegetação tropical
das ruínas do mercado se evocam desconhecidos templos romanos
connosco se cruzam estranhos homens de lipa[2]
galo de combate ao colo entre torsos e braços nus
estrada n.º 1 até Dili,
sulca abruptas encostas
ao mar sobranceiras,
lá se adivinham cristais multicolores
em lugar de pontes
se atravessam ribeiras
enormes leitos secos
estradas de ocasião
pedregoso solo,
cores indefinidas,
castanhos e verdes
palapas dissimuladas na paisagem
imagens tristes de pedras e montes
baías primitivas, inconquistas,
praias de despojos e conchas
paraísos insuspeitos
assusto-me com os sorrisos vermelhos
não é sangue nas bocas gengivadas
masca, mescla de cal viva e harecan[3]
placebo psicológico da alimentação que falta
um riso encarnado esconde a fome
súbito, por paisagens que só a memória
sem palavras descreverá
eis Dili, a capital
larga avenida semeando o pó nas palapas
casas com telhados de colmo ou zinco
chinas e timores
partilham a promiscuidade da pobreza
Dili, plana e longa
a vasta baía antevê imponente
o ataúro ilha
um porto incipiente
construções coloniais pós-1945
da guerra que ninguém quis
dos mortos que os japoneses exigiram
da neutralidade do país mãe calado e violado
a marginal desagua no farol
alberga chefes de serviço,
altas patentes militares
sem guerras para lutar,
sem movimentos libertadores das gentes
quinze quilómetros de asfalto
três casas dantes da guerra grande
aeródromo em terra batida
com jipe de afugenta búfalo
a rua comercial atravessa dili senhora
de leste a oeste, espinha dorsal
o palácio das repartições e o do governo
perto um museu
o seu nome ostenta o vazio
riquezas sem fim
que patriotas governadores exportaram
colonizadores de séculos
com nada para mostrar
um museu morto
e dois sinaleiros nas horas de ponta
ociosos às portas dos cafés
à noite transfiguram-se
os bas-fond
o texas bar
da prostituição às slot machines
o submundo,
a vida underground
afogar esperanças em álcool
sonhos há muito perdidos
nunca sonhados
restaurantes poucos,
boa comida chinesa
bares espalhados na cidade
militares e álcool para calar distâncias
um portugal dos pequeninos
longínquo,
cada vez mais esquecido
nunca perdido.
uma cidade sem vida
morrendo nas cinzas de cada noite
entre o silêncio e a voz triste dos tokés
o calor putrefacto
e o voo alado das baratas gigantes
carros poucos, de dia só do estado
motocicletas pululam
entre viaturas oficialmente pretas e verdes
esperando mulheres de oficiais
à porta do cabeleireiro ou do liceu
militares a pé,
em berliet ou unimog
chineses muitos
dili é isto, a desolação
na parte alta da cidade
fresco e verdejante vale
sob a sombra dos dois hospitais
o complexo militar de barracas insalubres
triste esta cidade
pretensamente euro-africana
palapas ao lado das valetas pútridas
marginando ruas
ali vive o timor sem água nem luz
dez ou quinze filhos
que importa
a miséria é só uma e a mesma?
esta “a terra que o sol em nascendo vê primeiro”
aqui as imagens
e são já história
não se repetirão
aqui não daremos testemunho
como transfigurar colónias pacíficas
em palcos de guerra.
547. eleições sem lições, 2012 LUCIANO
Díli 23 setembro 1973
cheguei hoje a timor português
sem o saber nunca mais nada será igual
o futuro começa hoje e aqui
entrei na era da ditadura
sairei na democracia adiada
na bagagem guardo sabores,
imagens e odores
sonhos de pátria e amores
divórcios e outras dores
cheguei sem bandeiras nem causas
parti rebelde revolucionário
tinha uma voz e usei-a
tinha pena e escrevi sem parar
para bi-béres e mauberes
48 anos de longo inverno da ditadura
24 de luta independentista
agora que a lois vai cheia
e não se passa na seissal
já maromác se apaziguou
crescem os láfaék nos areais
perdida a riqueza do ái-tássi
gorada a saga do café
resta o ouro negro
para encher bolsos corruptos
sem matar a fome ao timor
perdido nas montanhas
sem luz, água ou telefone
repetindo gestos seculares
mascando, sempre mascando
o placebo de cal e harecan
tem hoje direito a voto
para escolher quem o vai explorar
sob a capa diáfana da lei e ordem
do cristianismo animista
oprimido sim
mas enfim livre.
550. timor nas alturas – 2012 CHRYS
queria subir ao tatamailau
pairar sobre as nuvens
das guerras, do ódio, das tribos
falar a língua franca
para todos os timores
queria subir ao matebian
ouvir o choro dos mortos
carpir os heróis esquecidos
queria subir ao cailaco e ao railaco
consolar as vítimas de liquiçá
beber o café de ermera
reconstruir o picadeiro em bobonaro
tomar banho no marobo
ir à missa no suai
buscar as joias da rainha de covalima
passar a fronteira e voltar
chorar todos os conhecidos e os outros
e quando as lágrimas secassem
à minha palapa imaginária regressaria
à mulher mais que inventada
um pente de moedas de prata ofertaria
vogando nas suas ribeiras e vales
sussurrando no espesso arvoredo
desaguando no vale de vénus
nos seus beiros navegaria
ao ataúro e ao Jaco rumando
desfrutando a paz e a beleza ancestral
ouvindo os tokés e as baratas aladas voando
os insetos projetados contra as janelas
atraídos pela luz do petromax
a infância e a juventude são como uma bebedeira
todos se lembram menos tu
450. O TETO DO MUNDO 1974 LUCIANO
como romper as palavras?
o som e o lamento
do ai-tássi, sagrado lenho
em ti se moldaram
faces e rugas milenárias
caminhos de teto do mundo
nas mãos vazias viaja o passaporte
para que não sucumbas hoje
há muitas mortes nos amanhãs
teus pés ligeiros voam quilómetros
com o cacho solitário que colheste
bananas que não te matam a fome
regateias escudo lima
enganas malai com parco lucro
sorri teu rosto infantil e puro
a sobrevivência da semana vendeste
curvado vais e retornas satisfeito
no teu sorriso jovem galgas montanhas
teus os reinos de Railaco e TataMaiLau
misturas na cal e harecan
o prazer e o engano desfeito
e o teu estômago sorri confiante
no regresso de braços dolentes
a linguagem do corpo impante
apostas mais, sempre mais
no teu combate de penas
pobre mercador de enganos
em galos de luta acenas
teu ganha-pão insano acaricias
são tuas as lágrimas
a revolta e a derrota sacias
guardas o estilete acerado
não decepou os medos
é teu o sangue e o alimentaste
das árvores pendem camarões doces do rio
e o pequeno jacaré
faz o cruzeiro oceânico
ribeira de seiçal – díli
são tuas as planícies e as ribeiras
as torrentes inundaram o arrozal
levaram pontes e caminhos
e tu ris do grande engenheiro malai
e o búfalo do china luís
navega rumo à liberdade
e nem pensas na tua
maromác sabe maubere é diac e vai passar
608. eleições 2013 CHRYS
era tempo de eleições
políticos vinham e prometiam
a populaça aplaudia
acenava e acreditava
depois de contados os votos
os políticos desapareciam
junto com as suas promessas
e o povo esquecido esperava
assim crendo na democracia
uma pessoa, um voto, uma promessa
repetiam a antiga escravatura
acreditando serem livres
685 Díli inundado, 2016 LUCIANO
maromác zangou-se
as ribeiras transbordantes
em díli nada mudou
tudo alagado como dantes
décadas depois
nem os milhões do petróleo
dominam as águas
passados quarenta anos
sem dinheiro para voltar
dominam-me as mágoas
e a minha saudade
rima com verdade
[1] Cacatua-bote ou patas-de-aço eram designações dadas pelos timorenses aos aviões
[2] Lipa, saia de tecido colorido, típica, de origem malaia, os timorenses usam-na enrolada à cintura descendo até aos tornozelos.
[3] Folha de planta semelhante à do tabaco