POESIA DE TIMOR NO 31º COLÓQUIO BELMONTE 2019

Views: 0

548. queria ser toké 2012 LUCIANO

eu queria ser toké e contar o que vi

desde que parti em 1975

queria saber falar

dar os nomes os locais e os atos

de todas as atrocidades, violência e mortes

que testemunhei mudo na minha parede

 

eu queria ser toké e escrever tudo

queria contar o que não querem que se saiba

queria contar o que não queriam que se visse

queria contar os gritos que ninguém ouviu

 

queria ser água e apagar os fogos

que extinguiram a nossa história

como se não fora possível reconstruí-la

 

queria ser pássaro e levar nas asas

todos os que foram chacinados

violados, torturados e obnubilados

voar com as crianças que morreram de fome

as mulheres tornadas estéreis

 

tanta coisa que queria dar-te timor

e não posso senão escrever palavras

lembrar teu passado heroico

sonhar futuros ao teu lado

431. Díli, Timor, setº 1973 CHRYS

timor cresceu cercado

lendas que a distância empolgou

o sonho, a quietude,

as 1001 noites do oriente exótico

o sortilégio dos trópicos

para o europeu

desengano era a chegada

sobrevoa estéril ilha, montes e pedras

agreste paisagem sulcada de leitos secos

abruptas escarpas no subão

terra sem marca de homem

esparsas cabanas de colmo

será isto timor?

por trás de um monte imprevisto

o avião desce o vazio em círculos

em vão os olhos buscam a pista

e a imponente torre de controlo

que só existiu nos panfletos de propaganda

sob o zinco e o colmo

a alfândega é o bar e a sala de espera

isto é Baucau aeroporto internacional

a vila salazar dos compêndios que a história esqueceu

uma turba estranha se amontoa

à chegada do cacatua-bote[1]ou patas-de-aço

esta a cerimónia sagrada

deus estrangeiro baixando dos céus

dia de festa para os trajes multicoloridos

o contraste castanho dos sóis pigmentados

cinco da matina e é já pó e calor

o espanto mudo nas bocas incrédulas

as formalidades têm aqui sabor novo

espera lenta e compassada,

séculos de futuro por viver

antes que ele venha,

antes não venha

num barracão zincado

a velha bedford de carga

caixa fechada,

vidros de plástico sob o toldo puído

pomposo dístico colonial

carreira pública baucau-dili

picada em terreno plano, mar ao fundo

Baucau, cidade menina por entre palmares

densa vegetação tropical

das ruínas do mercado se evocam desconhecidos templos romanos

connosco se cruzam estranhos homens de lipa[2]

galo de combate ao colo entre torsos e braços nus

estrada n.º 1 até Dili,

sulca abruptas encostas

ao mar sobranceiras,

lá se adivinham cristais multicolores

 

em lugar de pontes

se atravessam ribeiras

enormes leitos secos

estradas de ocasião

pedregoso solo,

cores indefinidas,

castanhos e verdes

palapas dissimuladas na paisagem

imagens tristes de pedras e montes

baías primitivas, inconquistas,

praias de despojos e conchas

paraísos insuspeitos

 

assusto-me com os sorrisos vermelhos

não é sangue nas bocas gengivadas

masca, mescla de cal viva e harecan[3]

placebo psicológico da alimentação que falta

um riso encarnado esconde a fome

súbito, por paisagens que só a memória

sem palavras descreverá

eis Dili, a capital

larga avenida semeando o pó nas palapas

casas com telhados de colmo ou zinco

chinas e timores

partilham a promiscuidade da pobreza

Dili, plana e longa

a vasta baía antevê imponente

o ataúro ilha

um porto incipiente

construções coloniais pós-1945

da guerra que ninguém quis

dos mortos que os japoneses exigiram

da neutralidade do país mãe calado e violado

a marginal desagua no farol

alberga chefes de serviço,

altas patentes militares

sem guerras para lutar,

sem movimentos libertadores das gentes

quinze quilómetros de asfalto

três casas dantes da guerra grande

aeródromo em terra batida

com jipe de afugenta búfalo

a rua comercial atravessa dili senhora

de leste a oeste, espinha dorsal

o palácio das repartições e o do governo

perto um museu

o seu nome ostenta o vazio

riquezas sem fim

que patriotas governadores exportaram

colonizadores de séculos

com nada para mostrar

um museu morto

e dois sinaleiros nas horas de ponta

 

ociosos às portas dos cafés

à noite transfiguram-se

os bas-fond

o texas bar

da prostituição às slot machines

o submundo,

a vida underground

afogar esperanças em álcool

sonhos há muito perdidos

nunca sonhados

restaurantes poucos,

boa comida chinesa

bares espalhados na cidade

militares e álcool para calar distâncias

um portugal dos pequeninos

longínquo,

cada vez mais esquecido

nunca perdido.

uma cidade sem vida

morrendo nas cinzas de cada noite

entre o silêncio e a voz triste dos tokés

o calor putrefacto

e o voo alado das baratas gigantes

carros poucos, de dia só do estado

motocicletas pululam

entre viaturas oficialmente pretas e verdes

esperando mulheres de oficiais

à porta do cabeleireiro ou do liceu

militares a pé,

em berliet ou unimog

chineses muitos

dili é isto, a desolação

 

na parte alta da cidade

fresco e verdejante vale

sob a sombra dos dois hospitais

o complexo militar de barracas insalubres

 

triste esta cidade

pretensamente euro-africana

palapas ao lado das valetas pútridas

marginando ruas

ali vive o timor sem água nem luz

dez ou quinze filhos

que importa

a miséria é só uma e a mesma?

esta “a terra que o sol em nascendo vê primeiro”

aqui as imagens

e são já história

não se repetirão

aqui não daremos testemunho

como transfigurar colónias pacíficas

em palcos de guerra.

 

547. eleições sem lições, 2012 LUCIANO

Díli 23 setembro 1973

cheguei hoje a timor português

sem o saber nunca mais nada será igual

o futuro começa hoje e aqui

entrei na era da ditadura

sairei na democracia adiada

 

na bagagem guardo sabores,

imagens e odores

sonhos de pátria e amores

divórcios e outras dores

 

cheguei sem bandeiras nem causas

parti rebelde revolucionário

tinha uma voz e usei-a

tinha pena e escrevi sem parar

para bi-béres e mauberes

 

48 anos de longo inverno da ditadura

24 de luta independentista

agora que a lois vai cheia

e não se passa na seissal

já maromác se apaziguou

crescem os láfaék nos areais

perdida a riqueza do ái-tássi

gorada a saga do café

resta o ouro negro

para encher bolsos corruptos

sem matar a fome ao timor

 

perdido nas montanhas

sem luz, água ou telefone

repetindo gestos seculares

mascando, sempre mascando

o placebo de cal e harecan

tem hoje direito a voto

para escolher quem o vai explorar

sob a capa diáfana da lei e ordem

do cristianismo animista

oprimido sim

mas enfim livre.

550. timor nas alturas – 2012 CHRYS

queria subir ao tatamailau

pairar sobre as nuvens

das guerras, do ódio, das tribos

falar a língua franca

para todos os timores

 

queria subir ao matebian

ouvir o choro dos mortos

carpir os heróis esquecidos

 

queria subir ao cailaco e ao railaco

consolar as vítimas de liquiçá

beber o café de ermera

reconstruir o picadeiro em bobonaro

tomar banho no marobo

ir à missa no suai

buscar as joias da rainha de covalima

passar a fronteira e voltar

chorar todos os conhecidos e os outros

 

e quando as lágrimas secassem

à minha palapa imaginária regressaria

à mulher mais que inventada

um pente de moedas de prata ofertaria

vogando nas suas ribeiras e vales

sussurrando no espesso arvoredo

desaguando no vale de vénus

nos seus beiros navegaria

ao ataúro e ao Jaco rumando

desfrutando a paz e a beleza ancestral

ouvindo os tokés e as baratas aladas voando

os insetos projetados contra as janelas

atraídos pela luz do petromax

a infância e a juventude são como uma bebedeira

todos se lembram menos tu

450. O TETO DO MUNDO 1974 LUCIANO

 

como romper as palavras?

o som e o lamento

do ai-tássi, sagrado lenho

em ti se moldaram

faces e rugas milenárias

caminhos de teto do mundo

nas mãos vazias viaja o passaporte

para que não sucumbas hoje

há muitas mortes nos amanhãs

 

teus pés ligeiros voam quilómetros

com o cacho solitário que colheste

bananas que não te matam a fome

regateias escudo lima

enganas malai com parco lucro

sorri teu rosto infantil e puro

 

a sobrevivência da semana vendeste

curvado vais e retornas satisfeito

no teu sorriso jovem galgas montanhas

teus os reinos de Railaco e TataMaiLau

 

misturas na cal e harecan

o prazer e o engano desfeito

e o teu estômago sorri confiante

no regresso de braços dolentes

a linguagem do corpo impante

 

apostas mais, sempre mais

no teu combate de penas

pobre mercador de enganos

em galos de luta acenas

teu ganha-pão insano acaricias

são tuas as lágrimas

a revolta e a derrota sacias

guardas o estilete acerado

não decepou os medos

é teu o sangue e o alimentaste

 

das árvores pendem camarões doces do rio

e o pequeno jacaré

faz o cruzeiro oceânico

ribeira de seiçal – díli

são tuas as planícies e as ribeiras

as torrentes inundaram o arrozal

levaram pontes e caminhos

e tu ris do grande engenheiro malai

e o búfalo do china luís

navega rumo à liberdade

e nem pensas na tua

maromác sabe maubere é diac e vai passar

 

608. eleições 2013 CHRYS

era tempo de eleições

políticos vinham e prometiam

a populaça aplaudia

acenava e acreditava

depois de contados os votos

os políticos desapareciam

junto com as suas promessas

e o povo esquecido esperava

assim crendo na democracia

uma pessoa, um voto, uma promessa

repetiam a antiga escravatura

acreditando serem livres

685 Díli inundado, 2016 LUCIANO

maromác zangou-se

as ribeiras transbordantes

em díli nada mudou

tudo alagado como dantes

décadas depois

nem os milhões do petróleo

dominam as águas

passados quarenta anos

sem dinheiro para voltar

dominam-me as mágoas

e a minha saudade

rima com verdade

[1] Cacatua-bote ou patas-de-aço eram designações dadas pelos timorenses aos aviões

[2] Lipa, saia de tecido colorido, típica, de origem malaia, os timorenses usam-na enrolada à cintura descendo até aos tornozelos.

[3] Folha de planta semelhante à do tabaco

Sobre CHRYS CHRYSTELLO

Chrys Chrystello jornalista, tradutor e presidente da direção da AICL
Esta entrada foi publicada em AICL Lusofonia Chrys Nini diversos. ligação permanente.