POESIA DE EDUÍNO DE JESUS

Artigo do “Atlântico Expresso” do dia 31 de maio de 2021
“No Princípio Era o Verbo”
Eduíno de Jesus, “Como Tenuíssima Espuma de Luz” (Poética Fragmentária). Ponta Delgada, Nona Poesia/Nova Gráfica, 2021
Por Maria João Ruivo
O SOPRO
1
como tenuíssima espuma de luz
eco perdido
da primeira vibração
algures
no imo do infinito
Nada
2
como um fogo
ainda não e
jamais acendido
frémito de nenhuma
coisa ou alma
digamos
3
súbito
explode no âmago da Palavra
irrompe indomável
em todos os sentidos do Sentido
e
o corpo do poema
ergue-
-se
e s p l ê n d i d o !
1992
“Silêncio” é uma palavra que se ergue na poesia de Eduíno de Jesus e que, de certa forma, a estrutura. Esse silêncio recolhido é o momento em que ele dialoga consigo e com o universo que o rodeia e que o leva a uma constante indagação sentindo, por vezes, que não há as palavras certas para configurar todo esse universo reflexivo, o que o conduz à angústia frequente, talvez quase permanente, de sentir que fala uma linguagem que nem sempre é apreendida pelos outros.
“Vã palavra do Poeta:
inútil como o silvo
de, em qualquer ponto da Terra,
uma flecha disparada ao Infinito”,
diz ele no poema “Lápide” (pág. 15 de Como Tenuíssima Espuma de Luz).
Assim, creio que o Silêncio é a oportunidade de refúgio e de indagação sobre si próprio e o universo, com o qual dialoga há muito tempo.
No poema “Frémito” (pág. 86), o eu poético tenta reconstruir, a sós consigo, a sua destruída torre de marfim, “meu refúgio antigo” (diz ele). E é sempre a velha angústia de não encontrar a palavra certa para se pronunciar, como expressa na seguinte estrofe:
“Enquanto nos meus lábios morre
a palavra para que não
posso inventar pronúncia.”
Poderia aqui apresentar muitos exemplos retirados da sua Poesia como sinal de que, para Eduíno de Jesus, a Palavra é o começo e o fim de quase tudo.
Em “O Sopro” (pág. 20), cujo primeiro verso dá o título a este livro, o Poeta busca, a meu ver, a origem do Poema, como quem busca a origem de Tudo. Ele apresenta ao nosso olhar de leitores aquele breve momento em que, do Nada, surge o Universo, tal como do caos das palavras possíveis surgirá o Poema.
No primeiro verso, tudo aponta para algo ténue, volátil, nessa fragilidade de um começo que é, por isso mesmo, quase invisível, ideia evidenciada pelo adjetivo “tenuíssima” , que surge no superlativo, e na metáfora “espuma de luz” – algo frágil que se desfaz com um sopro, mas que é, todavia, animado pela luz, que remete para a origem, essa “primeira vibração”, espécie de esboço do que virá a ser a vida, esse frémito primeiro, vindo do âmago do Nada, que se anima e que deixou um “eco perdido”, que vem da lonjura do Começo e que o homem anseia encontrar, achando que nele estarão as respostas para os enigmas ligados a esse Nada que deu origem a Tudo e que os homens buscam desde sempre.
Ao mesmo tempo, temos “um fogo” ainda não e / jamais acendido // frémito de nenhuma / coisa”, remetendo, pelos próprios termos da negação – “não”, “jamais” e “nenhuma” – para o mesmo Nada, mas “frémito”, apesar de tudo, confirmando essa “primeira vibração” que, de súbito, surge do mais fundo da Palavra, dando origem ao Poema. Assim, tal como a vida, que não havia ou não se havia revelado, surge nessa explosão inicial, esse big bang de que tudo descende, também o Poema se ergue “esplêndido” e se torna revelação pela Palavra.
Esta ideia remete para o Apóstolo João: “No princípio era o Verbo”, cuja explicação me ultrapassa, mas que implicaria que, sem a Palavra (o Verbo), nada poderia existir. Do Nada, tudo surge pelo poder ativo da Palavra. Aliás, quando São João afirma que “no princípio era o verbo”, a expressão “no princípio” remete para o Gênesis – “No princípio criou Deus o céu e a terra”. Poderemos ter em conta que essa expressão remeterá para o começo material do universo ou, pelo menos, para a noção espácio-temporal. Além de que, se no princípio era o Verbo, poderíamos achar que, antes de o mundo existir, já o Verbo existia.
Não pretendo resvalar aqui para um terreno que não domino, mas, ao ler este “Sopro”, não pude deixar de pensar nessa questão, por difícil que seja entendê-la efetivamente e cujo aprofundamento deixarei para quem sabe. De qualquer modo, achei ver aqui colocada esta problemática da origem. De uma outra forma, esta ideia está também presente no poema “As Palavras” (p.37), que o autor dedica a meu Pai, Fernando Aires, em que mostra, mais uma vez, esse poder iniciático da Palavra. E cito:
“Imprecisas? Volúveis? Mas inamovíveis,
elas lá ficam na página branca
à espera de um Levanta-te e caminha
de qualquer voz humana.”
A poesia do Eduíno leva-nos por caminhos imensos, não fáceis de trilhar, e torna -se uma procura e uma descoberta permanentes, pois sugere, mais do que diz, deixando algum caminho aberto ao leitor. Ele encontra nas virtualidades da Palavra uma forma de busca, de indagação permanente. E a busca é uma forma de vida sonhada, pois o mundo é um grande mistério ainda por desvelar. Sendo assim, a Palavra transforma-se em Poema, dando, então, ao Poeta, o privilégio de buscar a origem ao mesmo tempo que vai criando a eternidade possível.
“As palavras, meu Deus, como são
Imprecisas, volúveis. No entanto,
elas só (enquanto os homens passam)
guardam para sempre o sinal do tempo.” (“As Palavras”, pág. 37)
Ponta Delgada, maio de 2021
Maria João Ruivo”
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    Urbano Bettencourt

    Maria João Ruivo, gostei muito de ler. Silêncio, Sopro, Palavra: três palavras da Criação poética. Tenho de fazer uma releitura da poesia de Eduíno em função de «Sopro», uma palavra que só agora me chamou a atenção, a partir da leitura do teu tex…

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