podia ser sobre as invejas do JOEL NETO

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DOS MEUS LIVROS
«Se me perguntarem de quem tenho eu inveja, o melhor é tirarmos a tarde. Tenho inveja de quem nunca precisou de privar-se do conforto para escrever um livro e de quem, não tendo nunca parado de trabalhar na sua ocupação diária, conseguiu, ainda assim, escrever livros brilhantes. Tenho inveja dos golfistas do Tour e, já agora, dos futebolistas da selecção. Tenho inveja de George Clooney (que diabo, até das namoradas de George Clooney eu tenho inveja) e tenho inveja, embora por razões opostas, de Sam Mendes também. Se há pecado mortal que cometo com gosto e paixão, é o da inveja. E, no entanto, não há homem de que eu tenha tanta inveja como o distraído.
O distraído é a figura mais privilegiada de uma família, de um grupo de amigos, de uma empresa. O distraído chega sempre atrasado – paciência, é distraído. O distraído chumba na escola primária – coitado, é distraído. O distraído não dá presentes no Natal – deixa lá, é distraído. O distraído não pergunta pelas análises com que nos andávamos a consumir – não foi por mal, já sabes que é distraído. O distraído é engraçado e é fofinho. O seu defeito, na verdade, é uma virtude. O distraído mete nojo e faz inveja – e, se há uma presença de que não gostamos nunca de dispensar-nos, é a do distraído. Dá patine, andar com o distraído. O distraído é um charme. O distraído é aquilo que nós seríamos se não fôssemos esta desgraça que somos.
Porque depois, ao longo da vida, o distraído fica com os melhores empregos. O distraído, bem vistas as coisas, não é aluado: é criativo – é um artista. E o distraído fica sempre com as raparigas mais giras também. Naturalmente: só é distraído quem pode – e o distraído é o mais bonito de nós todos. Também por isso, aliás, nos dá jeito emparceirar com o distraído: sempre pode ser que a gorda sobre para nós. A não ser que, sendo apenas mais entroncadinha do que as outras, a gorda seja também a melhor rapariga de todas, a mais doce, a mais generosa. Nesse caso, é certo que se vai casar com o distraído – e, ainda por cima, não tarda já fez uma dieta, já aprendeu a cozinhar, já leu o Proust e já é, contas feitas, a mais interessante de todas, a ver se consegue conservar o distraído.
Do outro lado, estamos nós: os organizadinhos. A vida do organizadinho é, claro, um pequeno inferno. O organizadinho acorda de manhã e vai logo responder aos e-mails. O organizadinho recebe dois mil telefonemas por dia e liga de novo após cada um dos mil e oitocentos que não se concluíram, por falta de rede. O organizadinho tem memorandos para redigir, reuniões para preparar, apresentações para escrever. O organizadinho passa na Segurança Social, reúne os papéis para o IRS e dá um salto ao dentista para marcar uma consulta porque, entretanto, não atende de lá ninguém. O organizadinho planeia as férias que vai fazer com o distraído, marca as aulas de surf a que vai assistir com o distraído, faz um desvio à Worten para ver os preços dos LCD em que planeia ver o Mundial com o distraído e a mulher do distraído e os miúdos do distraído. O distraído fica às vezes com a marcação do restaurante, mas distrai-se – e depois o organizadinho ainda vai jantar com ele à tasca rafeira duas portas abaixo.
O organizadinho morde-se nas bochechas porque come a correr e fere as mãos na porta do armário porque se veste a correr também. Entretanto, o distraído não atendeu uma chamada, não respondeu a um sms, não devolveu um e-mail. O distraído deixou o telemóvel no silêncio, esqueceu-se de carregar o cartão, nem ligou o computador. O distraído parte do princípio de que todos os telefonemas do organizadinho, parecendo diligentes, são no fundo supérfluos. O organizadinho, se vê que vai atrasar-se com um trabalho, manda um e-mail a pedir mil desculpas porque é capaz de atrasar-se, faz seis telefonemas a confirmar se o cliente recebeu o email, entrega afinal o trabalho a horas – e, depois, ainda fica com o ónus de se ter atrasado. O distraído atrasa-se todos os dias e depois espera que o cliente lhe telefone. O distraído é mais feliz do que o organizadinho. O distraído vive, em média, mais vinte anos do que ele.
Houve fases na minha vida (por exemplo: no liceu) em que tentei ser o distraído. O máximo que consegui foram algumas fotocópias e uma pilha de nervos. Hoje, contento-me em estar com o distraído. Somos ambos casados e já não é a gorda sobrante o que eu espero dele. Sei ele vai chegar atrasado, aliás. Mas, entretanto, terá valido a pena esperar. O distraído é engraçado.»
BANDA SONORA PARA UM REGRESSO A CASA
Crónicas, Porto 2011
May be an image of text that says "Banda Sonora Mg para Casa um Regresso a Joel Neto Editora"
Aníbal C. Pires, Telmo R. Nunes and 58 others
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