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VEM AÍ MAIS UM GARROTE?
Ricardo Paes Mamede/ Opinião
Sucedem-se os apelos para que o governo não pense agora no défice orçamental, incluindo por muitos daqueles que até há pouco defendiam saldos ainda maiores. O sentido de urgência justifica-se e não serei eu a defender o contrário. Dito isto, vale mesmo a pena termos presente o que nos espera, se nada de relevante mudar nas regras orçamentais da UE.
Ainda é muito cedo para fazer contas sobre as implicações económicas da crise sanitária e das medidas adotadas para a enfrentar. Há um conjunto vasto de variáveis que é preciso levar em conta, cuja evolução é difícil de prever: a quebra do PIB em 2020 e evolução económica nos anos seguintes, o aumento da despesa pública (para reforçar o SNS, pagar subsídios de desemprego e de assistência à família, implementar as medidas de apoio às empresas e trabalhadores, etc.), a diminuição da receita fiscal (devido à redução do consumo e dos rendimentos), taxas de juro, preço do petróleo, taxa de câmbio, etc.
Tal como outros economistas, estou a trabalhar em modelos baseados em cenários e os impactos estimados variam entre alguns pontos percentuais de PIB até valores catastróficos superiores a um quinto da riqueza criada no ano passado.
Para ter uma ideia aproximada do que isto implica, façamos um exercício simples. Imaginemos que o PIB cairá 10% em 2020 – um cenário já grotesco, mas não absurdo (tendo em conta, por exemplo, que o turismo pesa 10% no PIB e estará quase parado durante os meses de maior atividade, sendo que é apenas uma pequena parte do todo que é afetado pela paralisação).
Assumamos também que o Estado terá de aumentar a dívida pública nominal no equivalente a dez pontos percentuais do PIB, para cobrir as perdas associadas à crise. Neste cenário, o rácio da dívida em 2020 passaria dos 116% do PIB antes previstos pelo governo para 143%.
Ora, as regras em vigor da UE, inscritas no Tratado Orçamental e em muitas legislações nacionais, exigem que se reduza o rácio da dívida pública todos os anos numa proporção de 1/20 da diferença entre o valor médio desse rácio nos últimos três anos e a meta fixada para o conjunto da UE de 60% do PIB.
Antes da chegada do covid-19, no caso português, as regras em vigor exigiam que o Estado libertasse nos próximos cinco anos entre 2,8% (em 2020) e 1,7% (em 2024) do PIB para pagar a dívida (assumindo uma taxa média anual de crescimento nominal do PIB de 3%).
Com as hipóteses avançadas acima sobre os efeitos da crise sanitária (queda do PIB de 10% e aumento da dívida em dez pontos percentuais do PIB), a redução anual da dívida pública exigida pelas regras em vigor aumentaria para um intervalo que varia entre 4% em 2020 e 2,6% em 2024.
Isto significa que, para cumprir o Tratado Orçamental, o Estado português seria obrigado a aumentar os impostos e/ou reduzir as despesas públicas de forma permanente em cerca de 1% do PIB (em média) ao longo dos próximos anos, de modo a cumprir as metas da redução da dívida pública.
As contas que aqui apresento partem de uma hipótese heroica: a de que o mundo pós-covid evoluirá de uma forma semelhante ao que seria o mundo antes do vírus. Não é provável que assim seja. Não há motivo para esperarmos que as variáveis relevantes venham a ter um comportamento muito mais favorável do que aqui assumi.
Para todos aqueles que hoje aspiram ao reforço futuro do investimento no Serviço Nacional de Saúde, ou na prevenção das doenças infecciosas, ou na capacitação da sociedade portuguesa para as tecnologias digitais, ou no reforço da infraestrutura de telecomunicações do país, ou da redução da dependência que temos do turismo, entre outras ideias razoáveis para o desenvolvimento da sociedade portuguesa a prazo, vale a pena ter presente o garrote que as regras orçamentais em vigor irão representar, se não forem alteradas.
Um esforço de contenção orçamental de 1% do PIB, a acrescentar ao que tem sido a prática dos últimos anos, impõe uma pressão recessiva sobre o país, penalizando a atividade económica e o emprego. Uma vez que as regras se aplicam a todos os países da UE, muitos dos quais com níveis de dívida muito elevados, a atividade económica da Europa no seu conjunto tenderá a ser penalizada, não obstante as medidas que têm vindo a ser anunciadas.
O bom senso indica uma resposta óbvia para este dilema: a regra sobre o ritmo de redução da dívida tem de ser alterada, ou pelo menos flexibilizada. Mas há um problema: ao contrário da meta do défice, em que é fácil flexibilizar a meta num dado ano sem mexer nos tratados (esperando que em breve o saldo orçamental se recomponha), a regra da dívida tem efeitos duradouros. Um aumento de 20 ou 30 pontos percentuais no rácio da dívida pública demorará anos a corrigir. Ou seja, o problema estará connosco durante muito tempo, mesmo que a crise do covid-19 fosse breve.
Até prova em contrário, só uma alteração do Tratado Orçamental permitiria aliviar o garrote, face ao expectável aumento significativo do rácio da dívida pública. Mas qualquer alteração às regras em vigor exige o acordo de todos os governos e instituições envolvidos. No passado, nunca foi fácil conseguir o acordo de todos seja para o que for. Não é por acaso. As regras da UE foram desenhadas para não serem alteradas – mesmo que uma maioria de cidadãos europeus o exija.
No cenário atual, o mais provável é que se repita o que sucedeu em grandes crises do passado: os apelos à intervenção generosa dos Estados transformam-se, poucos meses depois, em exigências de austeridade reforçada. Desta vez, ninguém poderá dizer que a austeridade se deve ao despesismo descontrolado, mas a pressão virá na mesma. Gastemos agora, sim. Mas tenhamos bem presente o que isto significa para o nosso futuro no quadro das regras em vigor na UE.
Economista e professor do ISCTE