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MACAU COMO TERRA DO ETERNO ABRAÇO
Alberto Alecrim cheira a Lisboa. Mas, nasceu no Porto, freguesia do Bonfim, não muito longe do Mercado do Bolhão, e é sportinguista desde pequenino. No próximo ano, quando completar 83 de idade, o velho homem da rádio e dos jornais, militar em Goa no tempo da invasão, celebrará meio século do seu desembarque nesta região. Dirigiu a então Emissora de Radiodifusão de Macau e forçou, de forma espectacular, as autoridades a comprarem uma carrinha de reportagem. Inventor de piadas, contador de histórias, Alecrim conserva o humor de sempre, é uma figura inesquecível
Helder Fernando*
Depois de muitas reguilices de infância, na cidade natal, segue para Lisboa, vai crescendo e conhecendo as pândegas pelos ambientes mais populares e alguns mais selectos. Alberto exibiu cedo o dom da palavra e o saber adaptar-se.
“Vi crescer a capital, assisti à construção de muitas instituições que ficaram para sempre” – era a Lisboa dos anos 40. Década seguinte, a obrigatoriedade do serviço militar. Colocação em Goa, 1953. A Índia vivia atribulados anos do pós-independência, desejando recuperar os territórios administrados pelos portugueses, disso dando conta às autoridades de Lisboa que preferiram ignorar. Alecrim recorda alguns conflitos, não de grande monta, na zona de Tiracol, ou Terkhol, bela região norte de Goa, hoje atracção turística, onde ainda existe um forte mandado construir no século XVII pelo rajá Sawantwadi, posteriormente, 1746, na mão dos portugueses comandados pelo vice-rei do chamado Estado Português da Índia, D. Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos, que a mandou reparar e ampliar.
“Os “satyagraha”, defendiam a anexação de Goa à Índia, assim como a dos outros territórios ocupados pelos portugueses. Andávamos demasiado despreocupámos, não entendíamos que algo ia transformar-se, imaginámos serem casos absolutamente isolados. Se eu tivesse pensado melhor, não voltaria para Goa depois de feito o serviço militar”, lembra o veterano. Mas, aconteceu o contrário, o Estado Português da Índia deixou de existir de 18 para 19 de Dezembro de 1961. Era Alberto Magalhães Alecrim o responsável pelas emissões em língua portuguesa, na Emissora de Goa: “Organizávamos peças de teatro radiofónico e vários passatempos muito bem recebidos pelos ouvintes. Era director da Emissora, D. José Mesquitela, assim que viu as coisas mal paradas, saltou para Portugal”.
Muita tensão de parte a parte, principalmente depois da frase de Salazar que falava em qualquer coisa como ou os militares portugueses venciam o exército indiano ou morriam. Alecrim mantém até hoje a memória fresca: “Também podia ter fugido, mas deu-me uma vontade enorme de ver tudo de perto e de como a situação evoluía. No Altinho de Pangim, onde ficava a Emissora fui para o quartel-general onde estava o depósito do material de guerra. Na época eu era civil, mesmo assim vesti uma farda, agarrei uma espingarda e mandaram-me apresentar no quartel da polícia. O exército indiano estava ali mesmo do outro lado do Rio Mandovi. Senti que podia acontecer o pior, ou seja sermos sacrificados com relativa facilidade e Goa, neste caso, ser destruída”. O essencial destes momentos – e muitos outros, alguns filmados por correspondentes de guerra estrangeiros, tal como em Damão e em Diu – foram testemunhados por Alberto Alecrim, que chegou a estar prisioneiro, embora reconhecendo que “não trataram mal os prisioneiros portugueses.
Entre tantas atribulações narradas por Alberto Alecrim, retiramos estes dois exemplos de nítido significado: Devido a uma tentativa de fuga e consequente ira das tropas indianas, um brigadeiro preparava-se para fuzilar alguns portugueses, quando o capelão Ferreira da Silva se colocou na frente e, falando em inglês, dissuadiu aquele oficial a disparar. Outro episódio relaciona-se com Manuel António Vassalo e Silva. O então Governador de Goa, Damão e Diu, com pouco mais de três mil homens mal armados, observou a realidade, optando por não mandar para a morte os seus homens, face a dezenas de milhares de soldados das forças indianas, incluindo meios aéreos e navais – o navio de guerra Afonso de Albuquerque tinha já sido afundado pela aviação militar da Índia. Pela rendição, Vassalo e Silva foi expulso das Forças Armadas, obrigado ao exílio, sendo reintegrado depois do 25 de Abril. Posteriormente, regressou à Índia como convidado de honra do Estado Indiano, e muito saudado pelo povo de Goa.
Passado o conflito, territórios indianos recuperados, Alecrim regressa a Portugal onde surge a oportunidade de vir trabalhar para Macau, oferecida pelo então tenente-coronel Jaime Silvério Marques, mais tarde amigo pessoal e Governador de Macau, que o chegou a apontar para Angola no início da segunda metade dos anos 60. Já não havia retiros legais para fumadores de ópio, mas o território tinha duas ilhas e a cidade era dominada por vivendas com jardim. Na Calçada da Verdade, Alecrim pagava 250 patacas por dia, acima da média para a época, “quando o meu vencimento era de pouco mais de 1 100 patacas”.
Com nostalgia, recorda como aprendeu a conhecer Macau através dos longos passeios com Luis Gonzaga Gomes, tratado carinhosamente por Inho Gomes, ilustre sinólogo natural de Macau, profícuo investigador da História. Pouco depois acontece o célebre “1, 2, 3”, ou seja os reflexos da revolução cultural na RPC. Cerca de dois meses em que a comunidade portuguesa sofreu uma vasta série de dificuldades, incluindo o próprio Governador Nobre de Carvalho chegado ao território em plena crise. “Ainda me aventurei a caminhar pela parte baixa da cidade, perto do Leal Senado, onde derrubavam a estátua do coronel Mesquita, para entrar na Emissora de Radiodifusão que funcionava no edifício dos Correios. Só não passava fome porque um ou outro comerciante, como a mercearia Seng Cheong, agora recentemente encerrada, me fazia chegar alguns alimentos, como a outros portugueses”, lembra Alberto.
Outra fase inesquecível na vida de Alberto Alecrim, foi o 25 de Abril, que a Macau chegou com algum atraso. Terá sabido alguma coisa por intermédio de Rui de Mascarenhas, cantor português de fama internacional, contratado para vir actuar no restaurante Portas do Sol do Hotel Lisboa. Só depois os telexes da Reuters e da France Press iam dizendo alguma coisa. Nasceram logo algumas associações cívicas de matriz portuguesa – Alecrim não esconde a sua “grande simpatia” por Carlos Assumpção, presidente da Assembleia Legislativa local e pela ADIM, Associação para a Defesa dos Interesses de Macau. Ainda hoje, Alecrim repete este seu conceito: “Ninguém é imprescindível, mas Carlos Assumpção foi!”.
Evitando testemunhar o arriar da Bandeira Portuguesa, Alecrim chegou a retirar-se para Portugal. Mas durou pouco esse retiro. No regresso, trabalhou no Gabinete de Comunicação Social, renovou velhas amizades, tertuliando, espalhando as suas histórias sem fim, filmes que a memória nunca apagará.
Com o proverbial humor sempre acutilante, Alberto Alecrim sente Macau como terra sua. Aqui viveu alguns dos momentos mais marcantes da vida, aqui lhe morreu a primeira mulher e 1 filho. Em Macau nasceu uma das duas filhas e alguns netos. E, muito importante, foi em Macau que aprendeu de novo as coisas mais importantes do amor, com a sua companheira e esposa de 2 décadas. Convicto, afirma: “Se Macau sempre me abriu os braços, é Macau que continuarei a abraçar”.
* Radialista
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