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COMO O AMOR
Numa destas manhãs de luz direita e clara, andando a pé pela cidade, vejo um rapaz, com uns vinte e poucos anos, vestido como todos os jovens da sua geração – t-shirt colorida, calções de cor creme, abaixo dos joelhos, ténis – a escrever na parede de uma velha casa abandonada, de janelas e portas entaipadas e de destino incerto. Abrandei o passo, com curiosidade. Foi, talvez, o facto de não estar a desenhar, que me chamou a atenção. Indiferente ao movimento da rua, ainda escasso àquela hora matinal, ele escrevia. As letras, desenhadas a spray preto, abriam-se à brancura desmaiada da velha casa.
Ele percebeu que alguém o estava a olhar, mesmo estando de costas – como todos acabamos por perceber que somos olhados – pois voltou-se ligeiramente para mim e, sem esboçar qualquer outro gesto, regressou à escrita. Fiquei mais embaraçado do que ele, mas decidi esperar para ver o que escrevia.
Não demorou muito a acabar. Guardou a lata de spray na mochila, que levantou do chão, olhou para mim, agora de frente, e sorriu. De mochila às costas e de auscultadores nos ouvidos, desceu a rua, em direcção ao mar, sem olhar para trás uma única vez.
Num quadrado imaginário da parede virada para a rua, ficou escrito: “Ana, gosto de ti, como as nuvens gostam do céu. João”. A declaração de amor ficou escrita para a cidade e para o mundo, de um modo indelével, até que o tempo a apague. Pensei na misteriosa Ana, destinatária da mensagem. Seria uma namorada ou uma mãe, a quem também se fazem declarações de amor com a intensidade desta? Algum dia a mulher amada saberá desta declaração? Os seus passos serão guiados para este lugar? O que pensará quando olhar o poema-declaração que João lhe escreveu?
A velha casa volta a guardar o amor, no meio da cidade. Já não há gente a entrar ou a sair dela, as paredes já não recolhem ninguém, o tempo parou, emparedado nas janelas e portas tapadas, que não se voltam a abrir. O ruído da casa morreu no tempo, substituído pelo silêncio que prenuncia o seu fim. Já não se houve a voz da mãe a chamar os filhos para a mesa, a voz dos miúdos nas infinitas gritarias próprias da idade, a voz do avô a contar uma história antiga. As vozes da casa calaram-se. Renascem para murmurar a declaração de amor: “como as nuvens gostam do céu”. O céu precisa das nuvens. Como escreveu Ana Luísa Amaral, “por milagre, ou acaso, é assim/que estas coisas acontecem:/espalhadas pelo mundo”.
A severidade do tempo apagará, um dia, a declaração de amor, de um amor público, que não se resguarda dos olhares dos outros, mas que se abre ao mundo e o espanta, pela forma como é confessado. Um amor ousado, no despudor do olhar dos outros, que adivinharão o bater dos corações enamorados.
Esta declaração de amor tem o sabor da transgressão, que todo o amor assume. Proclame-se ao mundo: um homem ama uma mulher. Passo por aquela casa muitas vezes e penso na mulher desconhecida, a quem o amor se declarou. De certo modo, invejo-a.
A pedra escolhida é uma pedra transformada na habitação do amor.
(Publicado a 14 de Setembro de 2022, no Açoriano Oriental)