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É uma vergonha que a alma desista quando o corpo ainda tem forças (Marco Aurélio)
Um centauro no meio da cidade
Por Paula Cabral
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Na zona onde vivo, em Ponta Delgada, há uma loja que, apesar de ser quase central, serve a vizinhança e é vista como uma loja de bairro.
Por estes dias, estava a pagar as compras quando um jovem, com aspeto maltrapilho, destes que não se distinguem dos muitos toxicodependentes, pedintes, sem abrigo, que deambulam pela cidade, entrou na loja com ar apressado.
– Pode dar-me um saco? – pediu à funcionária da loja.
– São 10 cêntimos. – respondeu secamente.
– Não tenho dinheiro. Não me pode dar? – insistiu.
– Aqui é tudo pago! – retorquiu, sem nunca olhar para ele, calculando a soma das minhas compras no computador.
– Eh, senhora, tem 10 euros? – virou-se agora para mim, com os olhos arregalados.
Mais medrosa do que condoída, voltei-me para a empregada:
– Dê-lhe um saco que eu pago.
O rapaz pegou no saco, voltou costas e saiu depressa sem sequer agradecer.
Seguiu-se então um diálogo entre as funcionárias da loja:
– Olha, ele levava uma coisa escondida debaixo do casaco. O que será que roubou desta vez?
– Deve ter sido no supermercado lá em cima. Alguma garrafa de bebida…
Eu, assustada:
– Oh, estão a dizer-me que fui cúmplice de um crime? O rapaz queria o saco para guardar uma garrafa roubada?!
– Eh senhora, isto é todos os dias! No outro dia, foi aqui. Obriguei a devolver-me uma garrafa de vinho – e sublinhou – e era das mais caras!
– E não chamou a polícia? – quis saber.
– Para quê, senhora? Isto é todos os dias e a polícia não faz nada.
Fui-me embora com aquela conversa a espicaçar-me o pensamento.
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Aquelas funcionárias são um posto avançado no confronto da nossa sociedade com um dos problemas mais angustiantes dos últimos tempos. A miséria humana alastra nas ruas, derramada pelos passeios sujos, esquinas sombrias e pelos pontos de descarte de lixo da cidade. Descartados também eles, esses seres humanos tornaram-se o centauro indomável no meio da cidade. Viramos a cara para o lado, não queremos ver, mas ele lá está bestialmente presente e fazendo estragos nas famílias desfeitas, nas casas assoladas pela desgraça, no comércio amofinado, na cidade despovoada de alegria.
A indigência tornou-se banal e a resposta dada pela funcionária é a desolação de quem já nada pode fazer face à quotidiana irracionalidade.
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Hoje, no supermercado mais acima, uma empregada assopra e desabafa:
– Já não se pode, vizinha! Já os deixo andar!
Interessou-me saber o que se passava.
– Vizinha, é tanto ladrão todos os dias. É cada vez pior. Já ninguém vai atrás deles. Temos medo. Eles riscam os nossos carros e fazem-nos esperas ao fim do dia!
Dei-lhe razão. Não é função dos empregados deter criminosos.
Alguém, algures, na hierarquia da gestão do supermercado está a descurar a segurança dos trabalhadores ou a exigir demasiado das suas obrigações.
O mesmo se pode dizer da sociedade. Alguém, algures, na cadeia de comando da gestão coletiva, descurou o problema quando foi menor. Hoje exige de todos nós a confrontação diária com um problema que cresceu avassaladoramente. A pobreza tem muitas causas, mas a mais contundente é, sem dúvida, o falhanço da educação, conjugado com problemas económicos estruturais e até com fatores endógenos à nossa cultura.
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Os altos índices de insucesso em várias frentes são conhecidos e exigem uma intervenção coordenada também em várias frentes. As políticas sociais têm sido, sobretudo, de subsidiação. É preciso exigir também retorno e responsabilização a quem é ajudado por todos nós. Aceita-se que grande parte das nossas contribuições sejam canalizadas para ajudar quem mais precisa, desde que, efetivamente, sejam empregues com monitorização, pelo que o percurso de quem se encontra nas ruas da amargura deve ser seguido de perto e tem de ser consequente. E é isto que está a faltar.
Pôr rédeas num centauro desvairado é, de facto, um grande desafio, mas não pode ser um mito. É necessário pô-lo em causa, questionando as suas origens, prevenindo, disponibilizando recursos humanos nas ruas, nas escolas, ao domicílio, nas cadeias, junto às autarquias, nos centros de saúde, nas instituições de acompanhamento específicas. É preciso articular, formar uma estrutura que integre as várias faces/ fases de um problema que está para além do prazo de qualquer vigência de governo. É urgente que a intervenção se veja nas ruas, na segurança das pessoas, na saúde e na proteção dos mais frágeis e se sinta nas conversas fortuitas nos bairros das comunidades.
É preciso devolver a alegria às ruas, cheias de gente de corpo inteiro.
Paula Cabral