PAULA CABRAL ESCREVE

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Já saiu mais um número do nosso jornalinho “Voz Popular”.
Deixo-vos o meu artigo.
A gaveta
Era criança e a minha mãe, às vezes, propunha-me “endireitar” as gavetas como forma de me entreter quando lhe pedia sugestões, porque não sabia ao que brincar.
Organizar gavetas podia ter sido uma rica aprendizagem para a vida se tivesse aproveitado para enriquecer as capacidades de organização e disciplina… Em vez disso, detinha-me a divagar sobre o que encontrava.
Na antiga cozinha da nossa casa, aquela última gaveta do armário branco era especial. Era onde a minha mãe guardava as cartas da família. As cartas da avó Espírito Santo, das tias da América e dos tios do Canadá. Também guardava os postais de Natal mais bonitos, dos famosos “Hallmark”, que nos remetiam para cenários mágicos de montanhas de neve, com cabanas que deixavam adivinhar o acolhimento de lareiras acesas, rodeadas de árvores, altas e iluminadas por luzes multicolores, e bonecos de neve sorridentes. Lembro-me desses preciosos registos e tenho pena de a minha mãe não os ter guardado até hoje. Seriam autênticos documentos históricos das vivências daquele tempo, tão marcado pela separação das famílias e da emigração. As cartas da avó começavam sempre da mesma maneira ” Saudosos filho, nora e netos, espero que esta carta vos encontre de boa saúde”… fazia referência depois ao estado de saúde da família do outro lado do Atlântico e seguia-se um rol de conversas escritas como se estivesse a falar connosco em presença, dando conta da vida, do trabalho, disto ou daquilo. Por vezes, a falta de pontuação dificultava a leitura, mas a experiência da oralidade e da arte de conversar recuperava o fio à meada.
Parece que foi há tantos anos. Foi apenas um lapso de tempo que, entretanto, mudou o mundo. Havia tempo para escrever e para receber cartas, cuja leitura se saboreava em família. A minha mãe respondia pelo filho com toda a ternura, dando conta de como a vida sucedia também por aqui. Esperava pelo carteiro, que era o Sr. José ‘Carteiro’, há anos, sempre a percorrer as mesmas ruas, com o seu característico saco grande de couro, sabendo de cor e salteado, quem vivia em cada uma das casas da freguesia. O Sr. José, sempre tímido e muito rosado, acabava a sua tarefa muito cansado e já, perto da reforma, desabafava frequentemente que “estava que nem uma malassada” tal era a maçada.
Havia este tempo de demora na ‘ volta do correio’, todavia um tempo de espera alegre, expectante, sempre na esperança de boas notícias, talvez até o anúncio da próxima vinda à ilha.
Hoje, já ninguém escreve cartas. A comunicação, por se saber garantida e instantânea, até ficou mais rara. Não tem o mesmo sabor da palavra escrita à qual se voltava sempre que chamava a saudade. O cheiro das cartas trazia um pouco da América até nós. E é por isso que o tempo passa tão rapidamente, porque não nos damos ao prazer de apreciar, de esperar, de desejar, de sentir a demora até ‘doutra vez, se Deus quiser’. Passamos a correr pelos dias sem que nada seja digno de ficar registado. Nem ninguém se importará saber. Os chamados carteiros são agora temporários, não sabem os nossos nomes de cor nem trazem as boas novas na “carta da sua sogra!” ou do “seu irmão do Canadá!”, nem nós sabemos quem são os que nos batem à porta para entregar algo que já se fez anunciar eletronicamente. Nada surpreende e tudo passa sem a aventura da espera. O tempo extinguiu-se na previsão dos gestos, no cumprimento dos horários, na planificação da vida que não pode falhar. Não há lugar para o inesperado. De tanto arrumar o tempo em gavetas, ficamos sem o que precisávamos para o apreciar, para o deter e prolongar, fazê-lo render como só as crianças que ainda perguntam às mães o que fazer com o seu tempo de sobra. Se calhar, também já sobram poucas as que perguntam…
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